Voz do Além

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Esta história se passou em 1996. Eu havia começado uma especialização médica em Fortaleza. Tinha que viajar a cada duas semanas para passar uma sexta e um sábado na Escola de Saúde Pública do Ceará. Essa rotina ocorreria durante todo o ano.

Certo dia, João, na época era um dos agentes de saúde da cidade, me pediu uma carona. Ele precisava resolver alguns assuntos pessoais na capital, e minha ida regular veio a calhar para ele. Normalmente eu saia bem cedo na sexta feita, antes das cinco da manhã, assim eu chegaria com um pouco de sobra para o meu curso.

João residia na zona rural da cidade, num local bem extremado, na borda do município de Senador Sá. Ele teria que passar a noite em minha casa para sairmos no horário. Ele é uma pessoa extremamente inteligente, assim como humilde. Sua preocupação está sempre em não estar incomodando.

- Doutor... - ele sempre me chama assim mesmo eu insistindo que poderia me chamar pelo nome. Com o passar do tempo percebi que era além de uma questão de respeito.

- Diga João.

- Não tem problema eu ir mesmo com o senhor?

- Mas claro que não. Acho até boa a companhia.

- Sabe doutor, minha mãe estava muito querendo ir comigo. Tem algum problema dela ir junto?

- Não tem nenhum.

Como combinado, na tarde da quinta que antecedeu a viagem eles foram para minha casa. João e a mãe ficaram alojados no quarto de hóspede. Jantamos e fomos dormir cedo, afinal logo cedo sairíamos para pegar a estrada.

Levantei um pouco antes das cinco e João e a mãe estavam sentados no sofá da sala. Eles estavam com os olhos avermelhados e inchados como se não tivessem dormindo bem, neste primeiro momento pensei se não estariam acostumados em dormir em camas. Algumas pessoas do interior só dormem em redes.

- Acordaram cedo? - Perguntei.

- Doutor, o senhor não sabe! - Disse com uma cara que eu não sabia se era de lamentação ou de cansaço.

- O que foi que aconteceu?

- Nem sei como explicar - deu uma pausa. - Nós já tínhamos deitado quando começamos a escutar uma voz.

- Uma voz? - Me surpreendi. - Não teria sido o som da TV no meu quarto?

- Era não doutor. Parecia vir de dentro do quarto mesmo!

- Nós só não fomos embora porque a gente não sabia onde estava a chave da porta, mas eu fiquei com muito medo. - Pareceu realmente assustada agora a mãe de João.

Sentei-me junto a eles no sofá. Não que estivesse acreditando, mas estava preocupado. Não poderíamos perder a hora de saída.

- Essa voz dizia o que?

- No começo eu não entendi, era algo meio enrolado. Pensei que fosse o senhor nos chamando. Cheguei até a dizer "Sim, doutor? É o senhor? Está na hora?", mas como o senhor não respondia e a voz calou tentamos dormir novamente. Mas ai veio de novo a voz, levantei e fui até a sala e não tinha ninguém.

- Valha-me Deus! - Falou a mãe de João.

- Então voltei novamente para o quarto, mas confesso que já estava com medo. Dei um cochilo e a voz falou novamente. Desta vez escutei o que ela dizia.

- E o que foi João?

- Falou "são três horas".

Comecei a rir nesta hora.

- Não ria não que a coisa é séria - me interrompeu contrariado. - Eu tentei então falar com esta voz, e perguntei "é hora de que? É a hora da morte?".

Neste momento eu já não conseguia me conter mais e voltei a rir alto, juro que tentei segurar, mas não deu. João e a mãe me olharam com ar de pouca aprovação. Pus-me de pé e fiz um gesto para que me acompanhassem. Entramos no quarto de hóspedes.

- Acho que sei quem é este fantasma.

- Fantasma? - Arregalou os olhos a mãe do meu amigo.

Fui até a prateleira que ficava ao lado da cama e peguei um rádio relógio. Pressionei um botão ao lado do display de lcd e em seguida se escutou:

"Es cinco horas y diez minutos."

O rádio relógio falava apenas em espanhol, o que dificultava as vezes a compreensão, mas para João e sua Mãe, pessoas bem humildes que moravam numa área da zona rural onde sequer existia energia elétrica, parecia realmente algo bem estranho.

- Era esta vozinha mesmo! Quer dizer que nós ficamos acordados por causa desta coisinha aí? - Cearense adora um diminutivo.

- Foi sim. Agora só me resta pedir desculpa por não ter desligado este rádio relógio.

Há alguns meses antes precisei viajar e deixei um rapaz filho de Dona Maria, a pessoa responsável de cuidar da casa, para vigiá-la no período que estivesse de viagem para João Pessoa. Haviam me aconselhado a deixar alguém de olho na casa sempre que passasse mais dias fora. Não lembro mais o nome do rapaz, mas na primeira noite ele ficou de dormir lá o e rádio relógio falou as horas, ele cismado, se armou com um cabo de vassoura para inspecionar os cômodos. Sem encontrar nada voltou a relaxar, mas na hora seguinte, quando o relógio voltou a falar, ele saiu em disparada. Sua mãe, o vendo chegar em casa mais cedo, questionou e o mesmo afirmou categoricamente que não voltaria mais lá. Fiquei sem vigilante por este período, mas a história do fantasma em minha casa se espalhou. Não sei se o fato de nunca terem entrado em minha casa no período de estar fora foi por sorte ou se não haviam ladrões dispostos a entrar e enfrentar a voz misteriosa.


***

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Memórias de um Médico no SertãoWhere stories live. Discover now