CAPÍTULO 4
Não preguei os olhos a noite inteira. Enchi meu corpo de cafeína como nunca na vida, para não dormir. Estou acordado, mas não consigo prestar atenção às coisas a minha volta e nem ao menos focar a visão. Parece que tudo está no meio de uma névoa, onde eu não sou capaz de me orientar. Olho para o relógio e vejo que seis horas se passaram desde que cheguei aqui. Está demorando demais. Decido falar com uma enfermeira ruiva que está dobrando o corredor.
-Por que está demorando tanto? Não foi só um simples desmaio? –minha voz soa arrastada e preocupada.
-Mais que isso Coren. –ela responde num tom sério demais.
-O que aconteceu? Por que ninguém me conta nada?
-Killena teve uma parada cardiorrespiratória Coren. Quando ela acordou e percebeu onde estava. É muito estranho, já que ela não possui histórico de doenças cardíacas na família. Acreditamos que o ataque de pânico foi tão forte que a desestabilizou desse jeito.
-Ela está bem? –pergunto, de imediato.
-Vai ficar. Está descansando.
-Eu avisei. Eu avisei que eu tinha que estar lá. É por isso que eu odeio esse lugar, é por isso que ela odeia esse lugar. Ninguém nos escuta.
-Não é verdade Coren, nós...
-É sim. Ninguém dá voz aos loucos.
Assim que digo isso, cansado, vou para fora no hospital tomar um ar. Caminho rapidamente até a porta de entrada e logo sinto a brisa do vento em meus cabelos,. Está frio. Ouço meu telefone tocar.
-Alô? –atendo.
-Oi Coren, é a vovó. Tudo bem por aí?
-Oi vovó. –por um instante, penso em mentir. –Não muito.
-O que aconteceu meu bem?
-Estou no hospital. Killena desmaiou.
-Ora Coren, mas se foi só um desmaio, não vai acontecer nada.
-Não, não foi só isso. Ela teve uma parada cardíaca quando acordou vovó. Ficou assustada. –suspiro. - Eu não gosto daqui.
-Ei, vai ficar tudo bem querido. Tente respirar fundo.
-E se mandarem-na pra algum centro de tratamento vovó?
-Fico tranquilo meu bem. Preciso desligar agora. Seja forte.
Ela não disse que não irão transferi-la. Estou com tanta raiva. Ninguém me conta nada, e não aguento mais ficar parado aqui. Volto para dentro e me direciono a máquina de café. Tomo bastante, não em um copinho pequeno como deveria, mas em um grande copo descartável que estava ali para beber água. Olho para o corredor pelo qual ela foi levada. Eu deveria tentar bolar um plano primeiro. Mas não tento. Simplesmente olho para aquelas paredes brancas e vejo que a passagem está vazia. Então, corro.
* * *
O que decidi fazer não dura muito tempo. Mesmo com a ajuda da cafeína, estou tão cansado que caio no chão, bem ali, no meio do caminho, batendo os joelhos e causando um barulho que foi suficiente para chamar a atenção de um enfermeiro ao meu lado.
-Você está bem? –ele disse, parecendo estar sendo obrigado a fazer isso.
-Devo estar.
Então, ele simplesmente entrou em uma sala ao lado e sumiu. Eu nem ao menos sei a sala dela. Sinto o sangue ferver e lágrimas quentes acumulam-se nos meus olhos. Não deixo que elas escorram. Levanto-me, olho para os lados e encontro uma placa. Estou no corredor A, Hematologia. Continuo andando, passando pelos corredores B e C, virando a esquerda e a direita. Chego a um ponto onde há duas opções para escolher: D, Psiquiatria; ou E, Cardiologia.
Arrisco o corredor D, porém, não encontro nem sequer um médico e todos os quartos estão com as luzes apagadas. Parece que a tempos esse hospital não trata casos de transtornos mentais. Volto, e decido ir para o corredor E. Escuto passos aproximando-se, e me escondo atrás de um carrinho de limpeza que eu não havia percebido estar ali antes. Porém, para a minha surpresa, não vejo dois funcionários. Vejo a mesma enfermeira com a qual eu já havia conversado, e uma garota ao seu lado apoiando-se nela, com o braço ligado por um fio a uma estrutura de rodinhas que carrega um saquinho com soro, que a enfermeira arrasta junto a ela. Seria apenas mais uma cena normal, se os cabelos na garota não estivessem presos em um coque, que de longe, percebo que é azul. Quero pular em cima dela. Porém, escuto a conversa.
-O banheiro é logo ali querida. –a enfermeira indica.
-Obrigada.
-Vou te esperar aqui, você precisa voltar imediatamente para a cama depois ok?
-Ok.
Vejo-a se afastar até a porta indicada como o banheiro feminino, e não sio de onde eu estou.
-Eu sei que você está aí Coren. –ouço-a dizer.
-Posso falar com ela? –pergunto, levantando-me.
-Não pode esperar mais um pouco?
-Mas ela parece bem. Qual é o problema? Eu estou aqui a horas.
-Quando Killena voltar, irei precisar conversar com ela sobre o tratamento necessário que ela não está fazendo. Ela será nossa nova paciente na ala psiquiátrica.
Sem perceber, começo a rir.
-Você não a conhece. Ela jamais vai aceitar isso.
-Eu tentei ser legal Coren. Juro que tentei. Mas não tenho escolha. Você sabe que ela precisa disso.
-Preciso do que? –viro-me para o lado, e a vejo. De camisola branca, parada a uns dois metros de distância. Observando.
-Killena! –corro até ela, e a abraço. Porém, ela fica imóvel, e não retribui.
-O que foi? –pergunto.
-Você não foi me ver. Tem noção do quão horrível foi acordar em um lugar assim, sozinha?
-Eu tentei. Por favor, não se chateia comigo, você não sabe o quanto eu tentei.
-Tentou tanto quanto estava tentando, agora mesmo, me prender aqui não é?
-Do que você está falando?
-Vai me deixar aqui não vai? Você cansou de cuidar de mim e vai me deixar aqui.
-Ei, claro que não princesa. Eu não quero te deixar aqui.
-Mas terá que ficar Killena. –a enfermeira interrompe. –Me deixe falar com o Coren. Você não devia estar de pé, mal se recuperou ainda.
Vejo-a guiar Killena até um quarto no final do corredor, e depois retornar exatamente para onde estava. Ela senta-se num banco encostado a parede e faz um gesto para que eu me sente também.
-Não é o que você está pensando. Ninguém irá obriga-la a fazer nada a força, ninguém irá submete-la a nenhum tratamento doloroso. Nós vamos organizar sessões, como se fossem psicólogos, mas sem hora para acabar. Vai acabar quando ela achar que deve acabar. Nós iremos receitar remédios e tentar entender o que se passa na cabeça de Killena. Ninguém vai machuca-la.
-Eu posso acompanha-la?
-Posso arranjar para que tenha permissão pra isso.
-Tudo bem então. Se ela concordar, tudo bem.
-Obrigada Coren. Deixe-a descansar, vá para casa e volte aqui amanhã, que tal?
-Não. Não vou sair daqui.
-Como quiser...
-Por favor, qual seu nome?
-Ingrid. Pode me chamar assim se quiser.
Dou um sorriso fraco, e continuo sentado no mesmo banco enquanto Ingrid levanta e vai para o corredor A. Encosto a cabeça na prede, fecho os olhos, e me desconecto do mundo. Tanto não sentir nada, e adormeço.
* * *
Acordo com o barulho de um esfregão limpando o chão. Olho para o celular: Meio dia. Dormi três horas, o que com certeza não é suficiente para alguém que mais está parecendo um zumbi. Ignorando totalmente a necessidade de permissão para fazer isso, vou até aporta do quarto que vi Killena entrar ontem. Bato na porta e entro antes de esperar a resposta. Nos olhamos.
-Oi. –ela diz, desanimada.
-Oi. Como você está?
-Melhor.
-Killena, escute. Perdão por não ter conseguido estar com você ontem. Ninguém me deixou entrar.
-Tudo bem Coren. Eu estou sendo meio irracional.
-Eu falei com Ingrid ontem sobre o seu tratamento.
-Ingrid? Já mantém tanta intimidade com as enfermeiras agora Coren? Bom saber.
-Pare de ser idiota Killena. Preste atenção, e, por favor, analise o que eu vou te falar ok?
Conta a ela tudo que Ingrid me disse ontem a respeito de seu tratamento no hospital, esperando que ela compreenda que precisa disso e que ninguém irá machuca-la. Ou pelo menos eu espero que seja assim.
-Só vou fazer isso se você prometer ficar comigo.
-Eu vou.
Ela suspira.
-Tudo bem então. Senta aqui, por favor.
Ela aponta para uma cadeira ao seu lado, e eu me sento.
-Como eu posso te ajudar princesa?
-Conversa comigo, sobre alguma coisa aleatória. Não aguento mais essa monotonia.
-Certo. Sobre o que você quer falar.
-Não sei. Como era sua escola Coren?
-Digamos que não muito boa. Eu sempre fui considerado o nerd da sala, nunca tive amigos e não falava com ninguém além dos professores. Passava todo o tempo livre lendo. E a sua?
-Bom, eu não terminei o colegial, parei no segundo ano. Eu era a popular da escola sabe? Ninguém sabia o que eu tinha e não acho que tenha tido amigos de verdade. Tenho a impressão que as vezes as pessoas só andavam comigo pra ganhar fama.
-Não tivemos vidas escolares muito felizes. A gente daria um filme. – digo, em tom de brincadeira.
Rimos.
-Você nunca pensou em fazer Faculdade Coren?
-Já, já sim. Na verdade, eu ia tentar passar em alguma universidade pública. Mas aí aconteceu tudo o que aconteceu em Virgínia, e acabei deixando isso pra trás.
-Não deveria desistir por minha causa.
-Tenho tempo pra isso Killena, não se preocupe.
-O que você ia fazer?
-Psicologia.
-Psicologia? Mas você odeia hospitais Coren.
-Exatamente. Acho revoltante o jeito que a maior parte dos psicólogos trata seus pacientes. É horrível estar ali, contando seus problemas e seus medos, e ter que simplesmente sair, sem ajuda alguma, porque deu o seu horário. Gostaria de oferecer as pessoas o que eu nunca pude e sempre precisei ter.
-Você seria como um amigo?
-É. Isso mesmo.
-Gostei. –ela sorri.
-Você já se apaixonou antes Killena?
-Como assim?
-Antes de mim, eu quero dizer.
-Ah... é sim. Eu tinha uns 15 anos na época. Ele era meu amigo no curso de inglês, eu acho.
-E como foi isso?
-Bom Coren, posso resumir em uma coisa que já ouvi muita gente dizer. Sobre morrer mais cedo.
-O que isso tem a ver com o que estamos falando? –fico confuso.
-Quer
-O que isso tem a ver com o que estamos falando? –fico confuso.
-Quer morrer mais cedo? Fume um cigarro diariamente e você morrerá 10 anos mais cedo. Beba álcool todos os dias e você morrerá 30 anos mais cedo. Ou ame alguém que não te ama de volta. Você morrerá todos os dias.
-Desculpe. Não queria te deixar magoada. Vamos falar de outra coisa.
-Não, tudo bem. Faz muito tempo. Já foi. E quanto a você?
-Nunca me interessei por ninguém. Eu era tão isolado que nem prestava atenção nas pessoas ao meu redor. Acho que por isso que você é tão especial. Você me deixa menos invisível.
-Deve ser porque é difícil não notar alguém de cabelo azul.
-Não Killena. Mesmo que seu cabelo fosse castanho, todo mundo ainda iria notar você. Você se faz notar.
Nessa hora, uma enfermeira, que não era Ingrid, e sim uma mulher beirando os cinquenta anos, entrou com uma bandeja onde se via um parto de sopa, um copo d’água e um pãozinho ao lado. Por algum motivo, ela não implicou comigo ou perguntou se eu tinha autorização para estar ali. Simplesmente deixou aquilo na mesinha ao lado da cama e saiu.
-Odeio comida de hospital. Parece que alguém morreu ali dentro. –rio.
-é só sopa Killena. Vamos você tem que comer, ou não vai melhorar.
-Tudo bem papai, vou fazer um esforço.
-Quer que eu te dê na boquinha?
-Gostaria que você desse outra coisa na minha boquinha.
Sorrio, enquanto inclino-me para beija-la, tomando cuidado para não esbarrar em nenhum dos fios ligados ao seu braço. Não é como da outra vez. É delicado, não apressado. É simplesmente reconfortante.
-Quando nós vamos pra casa?
-Logo, logo. Mas você sabe que teremos que voltar aqui não sabe?
-Sei. Mas quero ficar em algum lugar em que eu me sinta bem, pelo menos um pouco por dia. Se não vou acabar surtando.
-Não vai demorar muito. E nós vamos passar por isso juntos. Eu prometo.
-Obrigada Coren. Por tudo.
Não dizemos mais nada. Espero que ela termine de comer enquanto observo o céu pela janela, que está aberta, e não trancada, como da outra vez. Depois, acaricio seus cabelos até que a vejo cair no sono outra vez. Impressiono-me com o quanto ela é linda, até mesmo dormindo.
Daí, tendo me convencer de que as coisas vão dar certo.
Vai ficar tudo bem.
* * *
-Coren! Coren acorda!
Desperto, cansado e com a coluna dolorida da dura cadeira, com a voz de Killena num tom mais alto que o normal.
-O que foi princesa? -pergunto, espreguiçando-me.
-É a Ingrid.
-O que aconteceu com ela?
-Ela... o corpo dela...tinha... –Killena parece extremamente assustada e pálida, com dificuldade de reunir as palavras certas.
-Ei, está tudo bem. Respire sim?
-Não está não Coren. Acharam-na morta. Assassinaram-na enquanto dormíamos. Acordei com o barulho nos corredores.
Imediatamente, levanto-me da cadeira, com os olhos arregalados e a mão sobre a boca aberta. Não pode ser.
-Como assim? Não, não podem ter simplesmente matado uma enfermeira em um hospital. Quem foi o culpado ?
-Ninguém sabe. Disseram que foi envenenamento, então vai ser mais difícil descobrir. Estou com medo Coren...
-Calma, ninguém vai encostar em você. –eu a abraço e acaricio seus cabelos, tentando conforta-la. Mas a verdade é que eu estou com medo também.
-Killena? –escuto uma voz vinda da porta, pertencente a um enfermeiro alto, de olhos azuis e cabelos loiros. Ele é jovem, bonito, e eu não o quero aqui. –Vim lhe buscar.
-Busca-la para que? –faço com que minha voz soe ríspida e de tom grosso.
-O doutor Hanks vai vê-la hoje. Vai ser como uma sessão em um psicólogo, nada além disso.
-Eu vou com ela.
-Você não ter permissão para isso.
-Ingrid disse que... –Killena tenta dizer, mas é interrompida logo em seguida.
-Ingrid está morta. Agora, venha comigo mocinha.
-Eu vou com ela.
-O disco travou nessa fala? O senhor não tem permissão para isso.
Corro até ele e prenso seu pescoço na porta com o antebraço, como se fosse asfixia-lo, lançando um olhar ameaçador. É difícil ameaçar alguém que ao contrário de você, não é extremamente magro, e sim, musculoso. Mas tento, por ela.
-Eu vou, e você vai ficar bem quietinho a respeito do que aconteceu agora. Não queremos mais uma morte aqui hoje.
Ele me empurra, me afastando.
-Acha mesmo que pode me ameaçar? Se toca. E, se eu fosse você, prestaria atenção na sua garota também, se não quiser que as suas atitudes sejam descontadas nela. Quarto 3, corredor D. Vão sozinhos.
Quando vejo que ele saiu e dobrou o corredor, digo alto e claro:
-Babaca.
-Não quero ir.
-Mas você precisa. Vamos, garanto que o doutor Hanks não é como esse idiota.
Estendo minha mão a ela que, depois de refletir por alguns segundos, a pega. A guio para fora do quarto e caminhamos, tentando passar pelo amontoado de gente que transite os corredores devido à confusão que decorre do homicídio, para o corredor D. Quando chegamos, procuro a sala 3, indicada por uma placa na porta.
Entramos.
-Você deve ser a Killena. –diz um velho, baixinho e gordo, de cabelos brancos e óculos, sentado atrás de uma mesa, sorrindo.
-Sou. –Killena responde, parecendo um pouco mais tranquila com a possibilidade do doutor mais parece um avô.
-E você? –ele direciona a fala a mim.
-Meu nome é Coren. Sou o... o namorado dela. –é a primeira vez que digo isso em voz alta, e eu nunca foz um pedido oficial de fato. Soa estranho, mas dizer “amigo” soaria mais estranho ainda.
-Certo. Sou o Dr.Hanks, mas se preferirem podem me chamar de Bennet. Coren, voc~e pode se sentar naquela cadeira e você no divã Killena.
Desconfiado, caminho até a cadeira indicada enquanto observo o velho sentar-se em uma poltrona e Killena deitar-se do divã. Quando todos estão devidamente acomodados, ele começa.
-Certo, vamos começar pelo começo sim? Por que não me fala dos seus pais?
Já percebo que ela não vai levar as coisas tão bem começando por essa pergunta.
-Não podemos começar por outra coisa?
-Killena, preciso que você seja sincera sobre tudo pra podermos fazer isso funcionar. Vamos, não vai doer.
“Não vai doer”. Como se ele tivesse algum direito de medir a dor das pessoas.
-Meus pais morreram quando eu tinha sete anos. Eu não tinha uma relação muito boa com nenhum dos dois.
-Como isso aconteceu?
-Um incêndio. Eles morreram em um incêndio.
Lembro-me de quando descobri a verdade sobre o incêndio. Killena não vai contar a verdade.
-Como esse incêndio começou?
-Não sei, eu era muito pequena.
Mentira.
-Então me conte porque você não tinha uma boa relação com sua família Killena.
-Minha mãe não ligava pra mim. Não importava o quanto eu tentasse chamar sua atenção, sempre acabava sozinha no quarto o dia inteiro. E meu pai... –ela suspira. –Meu pai abusava de mim.
-E você nunca pediu ajuda Killena?
Quero que a ignorância dele se transforme em uma corda, para que eu possa enforca-lo.
-Pedir ajuda pra quem? Não havia pra quem pedir ajuda.
-E você não tem outros parentes?
- Meus avós maternos haviam morrido antes mesmo de eu nascer, e os paternos ficavam em um asilo. Eu tinha tios e tias, mas eles moravam muito longe. E como mamãe sempre falava mal de mim, nenhum deles se deu ao trabalho de cuidar de mim.
Isso é horrível. Killena nunca havia me contado isso antes.
-E quando você saiu desse orfanato?
-Eu fugi, no meu aniversário de 16 anos. Foi o mesmo ano em que eu desisti da escola.
-Entendo. E quanto a sua... a sua doença?
-Você não é médico? Quer que eu te conte mais o que?
-Como você convive com ela Killena?
-É complicado. Quando eu menos espero, tenho um ataque e não consigo me controlar. Eu escuto vozes na cabeça, vozes falando comigo e me mandando fazer coisas. As vezes, parece que tem pessoas me perseguindo quando na verdade não tem. Antes era pior. De algum jeito, depois que conheci Coren, as coisas melhoraram. Não é tão frequente.
-A Esquizofrenia é uma doença cruel. Ela tira muito de você mesmo, tira algo que você precisa pra viver: Sua sanidade.
-Não acredito muito nisso doutor. Pra mim, no fundo todos somos loucos. A diferença é a frequência com que cada um releva a sua loucura.
-Não é bem assim Killena. Existe um grande abismo entre a anormalidade e a...
-Não ouse dizer que eu sou anormal. A minha vida inteira as pessoas disseram isso pra mim, e não é verdade. Não vou mais deixar que decidam se eu sou normal ou não.
Essa é minha garota.
-Perdão, você está um pouco fora de si querida. Continuaremos amanhã sim?
Sem se despedir, Killena levanta do divã e caminha pesadamente até a porta. Eu a sigo, sem olhar pra trás. Ela chega no quarto onde estava, e ao invés de se deitar na cama, senta-se no chão. Eu me sento ao seu lado.
-Foi horrível. –ela diz de cabeça baixa.
-Eu sei que foi. Era horrível pra mim também.
-Ele me fez contar coisas que eu não contaria pra ninguém, sem dizer uma palavra que pudesse me ajudar. E ainda me chamou de anormal Coren.
-Por isso eu odeio psicólogos Killena. Eles nunca se importam de fato com você.
-Ninguém se importa.
-Eu me importo. Eu me importo.
-Eu sei. Obrigada.
Ela deita sobre o meu colo, e eu pouso uma mão sobre sua cintura enquanto a outra acaricia seus cabelos. Peço para que nada estrague esse momento, o que funciona por alguns minutos. Mas logo vejo outraenfermeira na porta.
-Killena? Você precisa fazer um Raio X querida. –a enfermeira diz.
-Raio X? Porque eu precisaria de um Raio X? –ela pergunta.
-É só para confirmarmos umas coisas. Venha.
Killena levanta-se, desmanchando o curto momento de tranquilidade tido ainda a pouco. Seguimos a enfermeira até uma sala pequena, localizada entre outras duas no meio do corredor A, indicado como “Prognósticos”. Dentro dela, há uma maca e uma grande máquina, que reconheço como um avançado equipamento para a realização de exames de Raio X.
-Deite-se ali. –a mesma enfermeira diz, apontando para a maca branca. Em seguida, ela vai preparar o equipamento.
-Eles me amarravam em uma dessas em Virgínia.
-Ninguém vai te obrigar a fazer nada Killena. Fique tranquila. É só uma foto do seu cérebro, nada mais.
-Promete?
-Prometo.
A vejo ir para a maca, lentamente e com medo, e deitar-se nela, fechando os olhos em seguida.
Nem percebo quando tudo acontece e não entendo direito processo, mas logo a enfermeira já avisa que ela pode levantar-se e a chama para ver os resultados. Eu as sigo.
-Vê? –a enfermeira aponta para uma tela onde vê-se uma imagem de um cérebro em negativo. –Agora podemos estudar melhor você.
-Não a trate como uma cobaia. Ela não é um experimento. –digo, não conseguindo me controlar.
-Perdão. Mas deixe-me explicar. Você deve ter curiosidade quanto o que difere o seu cérebro dos demais não é?
-Killena não responde, mas ela explica do mesmo jeito.
-O Raio X detectou uma elevada incidência de anormalidades anatômicas no seu cérebro. O padrão de alterações observado em pessoas com a mesma doença que você, é muito similar e é composto por uma redução da espessura do córtex cerebral que se manifesta como um alongamento das cavidades cerebrais conhecidas como ventrículos, assim como podemos observar aqui.
-Certo. Agora que você já me disse o quão anormal eu sou, poso voltar para o meu quarto. –Killena pergunta, impacientemente.
Ela parece cansada, tem olheiras profundas e os cabelos bagunçados.
-Pode, mas depois faremos mais alguns exames e...
Saímos da sala antes que ela possa terminar de falar. Killena está com raiva, e eu sei por quê. Ela está sendo tratada como um ratinho anormal, que serve de cobaia danificada para eles. E isso é horrível. Tentando mudar de assunto, pergunto sobre Ingrid.
-Ainda não temos notícias da morte de Ingrid.
-Não, e nem precisamos. Ela morreu Coren, não tem o que fazer. Por que se importa tanto?
-Uma pessoa morreu dentro do hospital que estamos Killena. Isso não te preocupa?
-As pessoas morrem Coren, todos os dias. Se você for se importar cada vez que uma morte acontece, vai morrer também.
-Como você pode ser tão sentimental uma hora e tão fria em outra?
-Não sou fria, sou realista. Eu quero ir pra casa tanto quanto você.
-Pelo menos não é você que não toma banho há dois dias. –tento jogar a conversa para um clima mais leve.
-Credo Coren, como você consegue?
-Eu não quis ir pra casa e te deixar aqui, sua diabinha igrata.
-Diabinha? Prefiro quando você me chama de princesa.
-Não sei se combina com você.
-Se é pra combinar, irei te chamar de porquinho.
-Pelo amor de Deus Killena, não falo mais com você se fizer isso.
-Então vem, você pode usar o meu chuveiro. Ninguém vai precisar saber.
-E quanto às roupas?
-Esse vai ser um problema.
Como se fosse o destino, ao chegar no quarto, encontramos uma mala de roupas em cima da cama, junto a um bilhete:
Voltamos.
Pensamos que precisariam de roupas caso Killena não recebesse alta logo.
Se cuidem.
Um grande abraço.
-Vovó e Vovô
-Quando acha que eu vou poder sair daqui Coren?
-Não sei. Haviam me dito que você poderia ir pra casa e voltar pra ter as consultas todos os dias. Talvez...
-Deixa. –ela me interrompe. –Sei que não tem como. Moramos longe do hospital, não dá pra ir e voltar várias vezes todos os dias.
-Eu vou ficar aqui com você.
-Eu recusaria, mas sabe que eu preciso de você aqui.
-Tudo bem. Duvido que conseguisse ficar lá sabendo que você está aqui sozinha, de todo jeito.
-É. Obrigada.
Sorrio, agarro uma muda de roupas e caminho para a portinha no canto do quarto que o liga a um pequeno banheiro. Quando entro no chuveiro, desejo que a caba seja capaz de levar embora todas as possibilidades ruins junto à sujeira. Não me sinto bem nesse lugar e Killena muito menos. Coisas estranhas estão acontecendo aqui. E desconfio que a morte de Ingrid foi só o começo.
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CRAZY
RomanceO amor é perigoso. Mas o que fazer quando esse mesmo perigo é a única coisa que te mantém vivo? Coren já havia se decidido. Não havia mais motivos pra ficar aqui, não havia pelo que lutar ou viver. Até a chegada de Killena. Uma garota aparentemente...