O caderno vermelho

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KILLENA

Um toque. Dois toques. Três toques. Quatro toques... Quanto tempo uma idosa leva pra atender o telefone? Quando já começo a ficar impaciente, a vó de Coren né atende.
-Alô?- ela finalmente diz ao telefone.
-Senhora Holt? É a Killena, lembra de mim?
-Oi querida, claro que lembro! Você é aquela amiga do Coren não é? Que adora meus biscoitos?
-Isso senhora Holt. Preciso de uma favor, se a senhora puder me ajudar.
-Pode falar lindinha
-A senhora poderia trazer um... caderno meu que eu deixei aí? Ele tem capa vermelha e ficou no quarto que eu dividia com o Coren.
-Claro, claro. Hoje mesmo levo aí.
-Muito obrigada. Até mais então.
E desligo o telefone.
...
Acabo caindo no sono, e acordo três horas depois. Olho pro criado, e nele vejo o "caderno". Meu diário.
Me sento na cama, e folheio as páginas. Passo os olhos pelas dezenas de relatos de dias horríveis e dias bons. Sinto falta dele, e me doí pensar em como estamos afastados.
Imediatamente, levanto, o pego e caminho até o quarto de Coren.
Ele está dormindo. Coloco o diário no seu criado e deixo um bilhete dizendo: "Leia as páginas 97,98 e 99".
...

COREN
Acordo com fortes dores de cabeça e na coluna. Penso em ignorar o dia e voltar a dormir. Porém, algo chama minha atenção: um caderno vermelho colocado no meu criado, com um bilhete. Como esforço, me sento, estico o braço e os pego. Abro o caderno e de cara percebo que é um diário. Minha curiosidade pede para que eu leia tudo, mas o bilhete, assinado por Killena, ordena que eu leia três páginas em específico.
Pulo para as páginas indicadas e começo a ler a caligrafia feia e feita com tinta preta forte na página enfeitada de pequenos desenhos nas bordas.

Página 97
"07/03/2010
O dia em que eu vi as estrelas.
Sozinha. Eu estava sozinha. E quando digo sozinha, não me refiro apenas a presença física, embora não houvesse ninguém naquele quarto trancado de hospital.
Eu me sentia sozinha na alma. Fazia uma semana que eu estava presa naquele quarto sujo do Mental Health e, obviamente, ninguém havia ido me procurar, até pq eu não tenho nenhuma família e muito menos amigos. Parecia que minha única companhia eram as incessantes vozes na cabeça. E como eu odiava aquele lugar. Eles me prendiam, me chamavam de louca, me drogavam e pensavam que estavam me ajudando. Só que porra, não estavam. Estavam me matando. E naquele ponto, eu só queria sumir. Eu queria ir embora. Mas ele apareceu.
Um garoto desconhecido entrou no meu quarto e começou a perguntar coisas sobre mim. Ele agradeceu por eu tê-lo salvo da morte, mas.. eu não fiz nada.
Só que eu lembrava do dia do acidente. 7 dias atrás eu havia visto alguém, de pé na beirada da ponte, pouco antes de bater o carro. E sonhei com isso umas três ou quatro vezes no tempo que seguiu na minha entrada no hospital. Mas eu não podia dizer isso pro garoto, então, eu disse que as vozes haviam me contado. Ele já pensavam que eu era louca mesmo. Seu nome era Coren. Sabe o que ele fez depois de entrar naquele quarto? Ele mentiu pra enfermeira pra poder me tirar dali. E ele nem me conhecia. E na hora certa, me colocou nas costas dele e correu comigo pra fora daquele lugar. Nós fugimos juntos. Ao tardar da noite, me colocou num ônibus rumo a outra cidade, pra casa dos seus avós. Eu estava salva. Fazia apenas 7 dias que eu não via o céu lá fora, mas pareceram uma eternidade naquele hospital.
Naquela noite, adormeci no banco do ônibus olhando a janela, lá fora. Eu não precisei desistir.
Você me deu as estrelas de volta"

Nossa. Uma página e... tanta coisa. Eu disse que ela salvou minha vida mas... Como? E em que sentido? Eu tirei ela de um hospital e fugi com ela pra outra cidade. Coloquei ela na casa dos meus avós. Eu não posso ter esquecido essas coisas. Elas são importantes demais pra serem esquecidas. Ela é importante demais pra ser esquecida.
Com os olhos já marejados, vou pra próxima memória.

Página 98
"09/03/2010
Memória 2: o primeiro dia normal
"Tem tanta gente que reclama da própria vida por... Nada. Reclama por querer a vida como a do outro. Reclama por querer ser reconhecido, por viver escondido. Reclama por não ter tudo que o dinheiro pode comprar. E o que mais me me irrita: Reclama pelo dia a dia normal.
Por não acontecer nada além do comum. Mas eu só queria um dia normal. Um dia fora do hospital, um dia sem ouvir vozes na cabeça, um dia sem ser taxada de louca. E, principalmente, eu queria coisas comuns que todo mundo tem. Eu queria pelo menos um amigo, eu queria ser amada e parar de me sentir sozinha.
Ele me deu isso.
Neste dia: nós andamos pela grama sob o sol, e eu senti-a fazendo cócegas nos meus pés. Nós conversamos, livres. Nós entramos num lago cristalino, mergulhando na água e a espirrando um no outro. Nós observamos as flores amarelas na beira do lago. Nós voltamos pra casa, comemos biscoitos recém saídos do forno que a avó dele fez (que se tornaram meus preferidos) e ele riu pelo bigode que o copo de leite deixou no meu rosto. E depois, nos dormimos juntos. No sentido mais inocente da palavra. Mesmo. Você fez eu me sentir amada. Você faz eu me sentir amada. Você me fez feliz. Você me fez feliz. Quando eu mais preciso.
Você me deu meu primeiro dia normal"

A gente parecia um casal normal nesse dia, pelo visto. Mas já aprendi que não somos. Deve ser por isso que eu quis desde sempre ajudá-la. Pra sermos estranhos juntos. Pra somar tristezas e tente nos livrar um pouco delas. E eu estou começando a querer isso de volta. Me preparo para ler a última página. Respiro fundo, e sigo em frente.

Página 99
"20/03/2010
O dia azul e vermelho
Branco. Ele olhou pra parede do nosso novo antigo quarto e foi tudo que viu. E não gostou de ver isso. E foi de que, do nada, ele quis que pintassemos aquela parede, um lado de cada cor. Eu escolhi azul, e ele vermelho.
Sabe, há quem diz que azul é a cor da tristeza e vermelho a cor do amor. Ou do ódio, da raiva.
Os 3 significados combinam bem conosco. Acontece que, enquanto pintavamos a parede, não sei como, mas começamos uma guerra de tinta entre a gente, e dessa maneira, acabamos por espalhar manchas azuis no lado vermelho, e manchas vermelhas no lado azul. Como as marcas que um deixou no outro.
Nós nos beijamos.
Triste como azul, você pintou amor vermelho em mim.
Você me deu um dia azul e vermelho"

Fecho os olhos. Forço meu cérebro a lembrar. Qualquer coisa, qualquer vestígio. Eu só quero saber dessas coisas. Quero sentir essas emoções. Nada. É inútil. Desato a chorar. De frustração, de tristeza por não lembrar de momentos tão importantes. De repente, uma imagem vem a minha cabeça. Cabelos azuis de uma garota sentada a beira de um lago. O lago que eu reconheci nas fotos da casa dos meus avós. A única que imagem que talvez eu jamais tenha dela.
O cabelo dela era da cor do céu, e
quando olhava pra ela, sentia o mundo acordar em mim. Agora, ela parece feita de gelo e olhar pra ela me faz ter saudade de algo que parece que eu nunca tive. Mas penso em seus grandes olhos escuros que continuam me parecendo um buraco negro pra se mergulhar. Seria como se afogar num mistério. E eles me dão motivo pra não desistir ainda.

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⏰ Última atualização: May 07, 2018 ⏰

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