Revejo fotografias nossas. Pedaços que se acendem e apagam como se fosse possível folhear o tempo. Bem sei que uma relação acabada precisa de muito tempo para se extinguir. Há dois anos que saíste desta casa, sem aceno nem abraço, no entanto, continuo a achar que é teu o som do carro a estacionar lá fora. Que a campainha quando toca três vezes, és tu a regressar pendurado por fios e empurrado por saudades.
Amo-te calada, num silêncio que aperta sem lamento à espera de qualquer coisa que venha. Mas o quê? Vou-me acostumando. Só isso.Deixaste uns sapatos no quarto, que permanecem no exacto local onde os pousaste, como um móvel pesado demais para se mover lá continuam, ainda com o pó daquele passeio que fizemos ao Buddha Garden.
Bem vistas as coisas, o apartamento continua cheio de ecos teus. Por mero acaso, descobri ontem no congelador do frigorífico um saco de frutos vermelhos que usavas na tua sangria, completamente envolvido de gelo, certamente que o que existia no seu interior estava mais que queimado, mas enquanto ia descascando o gelo da couraça do saco, iam-se desembrulhando memórias. Lembrou-me os longos serões de inverno com os amigos, o crepitar da lareira, as gargalhadas da Marisa.
O que me atrai no passado é saber que, num instante, este se torna numa casa onde tudo mora. Voltei a colocar o saco no congelador, retirá-lo seria matar uma série de lembranças boas.
No outro dia, na fila do Lidl, chamou-me a atenção um cesto de compras que alguém transportava à minha frente. Lá dentro as tuas bolachas preferidas, o néctar de alperce, coxas de frango e até aquele roll-on que usavas para não manchar as camisas pretas. Só depois olhei e percebi que era a tua mulher.De sorriso cheio, silhueta elegante, toda cheirosa e irritavelmente rejuvenescida, tão linda como a superfície do mar. Eu, pequenina de repente, envergonhada, feia, vestida dentro de um fato mais largo que um saco e com um cabelo desgrenhado de domingo, limitei-me à circunstância. Estás muito melhor servido. Paciência, agora tanto faz. Resta-me a certeza de já termos sido.
Detesto esta ferrugem, esta fraqueza. Quer dizer, nem sei se é fraqueza, talvez seja esperança! Não me atrevo a tentar saber de ti, tenho a certeza que estás guardado por aí num lugar sem ruído.
Agora lá fora começou a chover à parva... Em dias assim tinhas um hábito terrível e do qual tenho tantas saudades. Quando o céu se entornava desta forma, abrias todas as janelas para que o apartamento ficasse com o cheiro da chuva. Não consigo evitar que um sorriso me suba até às bochechas com esta lembrança. É tudo tão estranho e tão vivo. Não vivo ancorada no passado, não vivo mesmo, mas a verdade é que tenho receio que as memórias tenham duração e data de validade e se esgotem, levando esta coisa no peito a tornar-se invisível.Existem afetos que só subsistem com a reinvenção constante da ternura. Talvez, por esse motivo, tenha comprado aquela ginja de Óbidos com copos de chocolate. Quando a bebíamos eram minutos até nos abotoarmos um no outro. O que eu não dava para que te lembrasses de mim abotoada em ti num segundo que fosse.
De noite é pior, acordas-me muitas vezes, talvez porque na maior parte do tempo te mantenho agrilhoado cá dentro e, durante o sono, escapas-te como um miúdo traquina que salta sorrateiramente pela janela. Fico sem sono, ligo a televisão, nem sei para quê. É tudo tão irreal, a vida a consumir-se transfigurada e artificial, indistinta da estupidez. E tu, intacto, a passear de lanterna acesa dentro do sótão da minha cabeça.
Vou vestir o pijama, esparramar-me no sofá antes que as pálpebras trémulas ocupem lugar à frente dos olhos e, hoje, prometo que só hoje, mesmo que não estejas, vou beber uma ginja em copo de chocolate para que nunca te desabotoes de mim.