Tenho uma tia cega que me diz muitas vezes;
"Ouvi agora uma memória..."
Aquilo intriga-me e enche-me de questões. Como é que se ouvem memórias?! - A todo o momento o mundo entra-nos pelos olhos num amontoado de pessoas, gestos e expressões mudas que não conseguiríamos distinguir sem a medida real da observação.
Por todo o lado existem luzes e sombras que se misturam sem se desviar e, para a minha tia, esses registos são sons de entrar pelos ouvidos.
Por vezes ponho-me a imaginar como serão os padrões da sua mente, as gavetas onde arruma a cabeça. Que ecos deixam as nuvens ao caminhar, qual o som de um pôr do sol ou que percepção terá ela quando ouve uns olhos tristes.
As emoções chegam-lhe dentro de sopros, como borboletas de apanhar às escuras.Para mim, a tia cega pertence a um patamar muito complexo e misterioso da espécie humana. Um estádio avançado da natureza.
É muito pequenina. Quando levanta os braços é quase do meu tamanho. Simultaneamente, acho-a dotada de uma santidade qualquer, uma grandeza impossível de conceber. Reconhece-nos pelos passos, pelo perfume, pelo respirar, até pelo tempo dos nossos silêncios ela diz que sabe tudo.
Mas como reconhecerá ela o branco sujo de uma parede ou a profundidade das manhãs de nevoeiro? Quanta distância existe no seu longe?
Imaginei-a sempre como um mosteiro de andar, enclausurada na escuridão, sem acesso ao mundo lá fora. Um dia, direcionou aqueles olhos de enfeitar na minha direcção. Sorri e ela também. Ergui as sobrancelhas e ela também! Esbocei um sorriso e ela, traquina, tirou a língua para fora!
Fiquei a pensar naquilo. Se calhar, o que andamos a viver é afinal uma imitação, uma fraude! E é esta universal capacidade de ver, que nos torna vulneráveis impedindo-nos de avistar as veias das pedras e o coração nas asas dos pássaros.