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Aquele era o dia. Aquele seria o momento em que Kyoko iria finalmente usar a sua dor para ajudar os outros da melhor maneira possível. Isso fazia-a a sorrir, ainda que tivesse um buraco no peito.

Quando a morena deu o primeiro passo ao subir as escadas, inspirou fundo, aguentou três segundos, e depois expirou todo o ar que tinha nos pulmões, como se quisesse reiniciar o seu corpo. Voltou a nadar, mas desta vez com confiança.

Ao chegar à porta do hospital, sorriu, mesmo sem ter alguém para quem sorrir. A mulher tinha decidido que, ao dar aquele passo, queria fazê-lo sozinha. Assim, tinha pedido a Ashton que não fosse com ela. Portanto, Kyoko sentia-se meio perdida ao andar pelo hospital sem ninguém ao lado, mas ela conhecia aquele lugar de ginjeira e não teve problemas a encontrar o quarto que lhe tinham disponibilizado para a sua pequena palestra.

Mal chegou ao tal quarto (onde tinham tirado todas as camas e tinham colocado cadeiras de plástico azuis), Kyoko voltou a tentar reiniciar o seu corpo. Estava lá uma hora antes, de modo a puder preparar tudo para que não houvesse um único erro enquanto ela falava com outros pais. Aquele seria um momento importante, não só para ela, como paras os pais que pensavam que estavam sozinhos naquele mundo e aqueles que receavam perder a sua pequena bola de felicidade.

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Assim que olhou para o seu relógio de pulso e viu que apenas faltavam quinze minutos para a hora combinada da sua apresentação, a mulher soube que começariam a entrar pais. E assim foi. O primeiro casal entrou e dirigiu-se a ela, apertando-lhe a mão e conversando um pouco com ela. Depois sentaram-se, como se já se sentissem confortáveis e já confiassem naquela pessoa desconhecida que ali estava.

O casal tinha um ar cansado, mas não pareciam já ter perdido o seu filho, pela simples razão de que os seus olhos não estavam vermelhos e nenhum deles estava demasiado magro ou demasiado gordo. Ainda não estavam em fase de desespero.

Já Kyoko não se tinha dado ao trabalho de colocar maquilhagem, apenas se penteara e vestira roupa formal. Ela queria mostrar todas as imperfeições na sua cara, a fim dos pais e outros familiares perceberem de que todos passavam pelo menos - todos paravam de comer, de dormir, de viver a vida com um ser humano. Mas também queria mostrar que não estava muito mal, pelo menos não tão mal como começara.

Ao fim de vinte minutos, a sala estava cheia de familiares de crianças com doenças ou que tinham sido perdidas pelas mesmas.

E, assim, a morena começou, sem o apoio do seu amigo, apenas o sorriso do seu ex-marido no fundo da sala e o olhar atento de vários pais.

"Boa tarde. Antes de mais, gostava de agradecer a todos os que estão aqui presentes. A verdade é que eu também estou a fazer isto por mim mesma. Mas, acima de tudo, espero conseguir ajudar pelo menos uma pessoa que aqui está comigo hoje."

Ao olhar em volta enquanto falava, Kyoko conseguia sentir os olhares intensos a penetrarem-lhe o corpo, absorvendo cada palavra que ela proferia. A pressão que ela sentia era inigualável a qualquer outra.

"Como devem saber, eu perdi o meu filho há três anos atrás. Eu nunca, mas mesmo nunca, desejaria o mesmo a outra pessoa, por muito mais que a odiasse. Eu lembro-me tão bem da dor que senti no peito quando me disseram que o meu filho tinha, em fim, falecido. O meu pequeno Stanley tinha morrido e eu não podia fazer nada. A única coisa de que eu não o podia salvar tinha acontecido e eu senti-me a pior mãe de todo o mundo. Perdi a vontade de viver, completamente." Os seus olhos estavam molhados e ela tinha um nó na garganta, mas continuou. "Eu nem tenho palavras para descrever o que senti. Não foi horrível, nem terrível, nem péssimo, foi muito pior que isso, ou talvez tudo isso misturado. Foi assustador e medonho e hediondo e aterrorizante e violento mas, a cima de tudo, impiedoso. Foi, sem dúvida alguma, a pior sensação de sempre. No entanto, nem tudo o que são memórias do meu filho são más memórias. Eu tenho várias boas memórias do Stanley - até de quando ele estava no hospital! - e imagino que todos vocês tenham também. E isso é que eu acho importante."

Seguida à sua pequena introdução, Kyoko começou a contar alguns dos melhores momentos que tinha passado tanto com o seu filho como com o seu ex-marido e ainda amigo. Contou aqueles que se lembrou, visto o desenvolvimento da sua palestra ser apenas improviso, mas conseguiu alguns aplausos, risos e alguns aw's vindos da plateia. Pediu ainda a alguns pais que contassem eles as suas histórias; as melhores memórias que conseguiam lembrar-se naquele momento. Foi uma hora divertida, em que todos puderam participar.

"Mas enfim, podemos então concluir que temos muitas boas memórias, certo?" A morena perguntou retoricamente  enquanto limpava pequenas lágrimas que tinham escapado de emoção e de tanto rir. Algumas pessoas acenaram, outras apenas sorriram. "O Stanley era a pessoa mais importante da minha vida e ainda hoje é, pois o facto de ele já não estar comigo não significa que eu o tenha esquecido. Na verdade, antes do meu filho nascer, sempre pensei que o Grayson, o meu ex-marido, fosse a pessoa que eu amava mais em todo o mundo.Mas mal o meu pequenino nasceu e o colocaram no meu peito para que ele sentisse o meu cheiro, eu tive a certeza de que, se fosse preciso, usaria o Grayson como escudo humano para proteger o meu filho. Eu faria qualquer coisa para vir o mais pequeno sorriso nos lábios do Stanley. Eu faria de tudo para proteger, mesmo sacrificar-me ou àqueles que me são mais próximos. Por muito má que eu pareça, eu faria mesmo de tudo. No entanto, a vida pregou-me uma partida e pôs o meu filho em perigo com a única coisa de que eu não o poderia proteger: uma doença. Não pude fazer nada e espero que o Stanley não me culpe por isso. Ele era tão novo, com apenas quatro anos, e perdeu a vida. Quando penso na hipótese de ele me culpar, choro. Mas depois penso na possibilidade do meu filho estar a crescer noutro lado (no céu, por exemplo) e de estar a amadurecer e de estar a entender o que lhe aconteceu e de não me culpar nem a ninguém pelo que lhe aconteceu. Não foi culpa dos médicos, que fizeram o que puderam, não foi culpa minha, que estive ao lado dele mesmo quando estava fraca, não foi culpa do pai, que brincou com ele e lhe deu de comer mesmo quando ele vomitava no colo do pai, não foi culpa dos amigos, que não tinham idade suficiente para entender o que se passava, não foi culpa dos familiares, que sempre o visitaram ao hospital. Foi o destino, acho eu, que não podia ser evitado." Kyoko chorava, mas manteve a calma, para que não começasse a soluçar a meio do seu discurso. "Até ao último momento tive esperança de que ele melhorasse, por iss, para aqueles que ainda têm os filhos aqui internados, não desistam já dos vossos filhos, porque milagres acontecem, acreditem. Já aconteceram, porque não com vocês? E para aqueles que já perderam os filhos, eu sei como é e não se preocupem, que melhora mesmo. Ao início, a dor é insuportável. Nas primeiras semanas seguintes, ainda é pior, pois apercebemo-nos de que a nossa rotina mudou e nem conseguimos respirar. Depois vai melhorando muito lentamente, tão lentamente que tudo parece estar igual. Mas ao fim de um ou dois anos, talvez três, já se vê uma mudança: já não custa a respirar, já aguentamos uma refeição completa na barriga, já conseguimos dormir a horas decentes, já conseguimos divertir-nos sem remorsos. Eu quero que todos aqui saibam que os vossos filhos não vos culpam e nunca culparam. Eles sabem que vocês os amam e que se preocupam, por isso eles nunca seriam cruéis o suficiente para vos culpar. Vai tudo melhorar, acreditem, e a culpa não foi vossa."

Ela terminou com um sorriso genuíno e lágrimas nas bochechas e camisa de botões. Ouviu palmas de seguida e sorriu ainda mais. Finalmente ela tinha dito tudo aquilo que sentia. Aquela última frase tinha sido mais para ela do que para qualquer outra pessoa naquela sala. No entanto, se essa frase ajudasse outra pessoa, isso era suficiente para a fazer sorrir.

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como este capitulo está maior do que o normal, o epilogo vai ser curtinho

anyways, ACABARAM-SE OS TESTES, AGORA VEEM OS EXAMES.

como vai a vida, minha gente?

ily

Blue Memories :: afiOnde histórias criam vida. Descubra agora