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Aquele não era, definitivamente, um bom dia para Kyoko. Não era mesmo e ninguém poderia mudar isso. 

Fazia naquele dia três anos que Stanley tinha morrido. Era inevitável recordar tudo pelo que ela e a sua família tinham passado ao ver o pequeno menino a sofrer tanto. 

"Vou morrer, pai?" Stanley perguntava muito inocentemente, nem se quer tendo noção do que aquilo significava nem da força das suas palavras.

"Não." Grayson abanava a cabeça. Ele estava sempre sentado ao lado do filho, que ficava deitado numa das camas do hospital por estar muito fraco para puder fazer qualquer atividade física. O homem tinha sempre a mão a tocar em alguma parte do filho, com medo de que se não lhe tocasse, Stanley lhe escapasse pelos dedos e não voltasse. Naquele momento, afagava os cabelos do filho e tentava conter as lágrimas enquanto sussurrava todas as palavras que dizia. "Não vais. Tu és tão forte. A mamã e o papá não te vão deixar ir, e é por isso que tens de continuar a comer, está bem? Para nos ajudares a lutar contra esse bichinho que tens na cabeça."

Ao ouvir aquela conversa quase todos os dias, Kyoko mantinha-se afastada deles e virada de costas, para que o filho não conseguisse ver o quão ela sofria. O filho já nem aguentava comida no estômago e ela só chorava.

"Vá lá, amiguinho. Come alguma coisa. Se comeres, quando saíres daqui, podemos ir à Disneyland." Grayson mordia o lábio, com medo de isso nunca se vir a concretizar.

Mas Stanley apenas mostrava o sorriso mais alegre que conseguia e arranjava forças suficientes para comer um pedaço de maçã. Ao terceiro pedaço, começava a ter dores de barriga e sentia a comida a voltar para a boca, acabando por vomitar algumas vezes.

"Não faz mal. Amanhã comes mais."

E quando o menino se sentia cansado e adormecia, o casal saía do quarto que ele partilhava com outras crianças, e agarravam-se um ao outro, chorando e soluçando. Os dois sentiam dores agudas no peito pois, a cada dia que passava, o seu filho começava a comer menos.

Essa era apenas uma das lembranças que apareciam no dia em que o rapaz tinha falecido, e nem era a pior. Algumas lembranças eram boas, como antes de tudo aquilo ter começado, mas a maioria era mesmo insuportável.

Sentindo que não ia aguentar passar aquele dia sozinha, Kyoko pondera ir ter com Grayson para passarem o dia juntos, mas depois lembra-se de que seria pior para ambos verem a pessoa com quem passaram os piores momentos da sua vida.

Assim, ela manda uma mensagem a Ashton, a perguntar se se podiam encontrar. O homem de cabelo claro tinha-lhe respondido com a sua morada e a dizer que ela fosse a casa dele, pois era um fim-de-semana e ele não tinha grande coisa que fazer.

A mulher assim o fez, saindo de sua casa, entrando no seu carro, e conduzindo até à morada que lhe fora dada. Quando lá chegara, Ashton já estava à sua espera, deixando-a entrar em casa.

"Peço desculpa te ter pedido para estar contigo tão de repente, apenas não conseguia passar este dia sozinha." Ela informou, coçando o seu braço com a mão direita. Era um hábito que ela tinha quando estava mesmo muito deprimida. Ela coçava-se sempre até fazer sangue.

Ao reparar, Ashton agarrou na sua mão, para a parar, e encaminhou-a até ao sofá na sala, onde se sentaram os dois. O home estava habituado a ver a morena com mau aspeto, mas credo, ela estava mesmo mal naquele dia. Pele pálida, olhos escuros com olheiras enormes, borbulhas pequenos espalhadas pelo seu nariz. Parecia que ia desmaiar a qualquer momento.

"Não faz mal." Ele assegurou, tendo uma vaga ideia do que aquele dia podia ser. "Já comeste alguma coisa hoje?"

"Não." Ela abanou a cabeça, voltando a coçar-se. "Não consigo."

"Então vamos ver um filme, está bem?" Ele perguntou cautelosamente.

Mesmo sem uma resposta por parte da mulher, o loiro levantou-se e foi buscar pipocas à cozinha. De seguida, procurou um filme que lhe interessa-se num dos canais que tinha. Assim que o encontrou, encostou-se para trás, puxando Kyoko com ele. Sentindo que precisava de aconchego, a mulher encolhe-se em cima do sofá e coloca um dos seus braços atrás do tronco de Ashton, fazendo com que o homem colocasse o seu sobre os ombro dela. A outra mão da mulher foi pousada em cima do peito do homem e deixou-se lá ficar. Sabia bem ter algum aconchego.

Durante o filme todo, nenhum deles se conseguiu concentrar. O objetivo de Ashton estava cumprido: fazer Kyoko comer alguma coisa. Ao início, a mulher petiscou umas quantas pipocas sem dar por isso. No entanto, a meio do filme os dois deixaram de ligar ao que acontecia há volta deles.

Ashton só conseguia pensar nas noites que passara com a sua ex-namorada a ver televisão. Ela aconchegava-se a ele, tal como Kyoko. E depois nunca se calava, fazendo com que nenhum deles percebesse o que se estava a passar no ecrã. Mas o homem gostava de Eva assim, tagarela e alegre.

Já Kyoko só conseguia pensar no seu filho. Ela recordava-se de todas as vezes que o seu filho ia para a cama dos pais e se aconchegava a eles. E também se lembrou de que, quando ele ficou alojado no hospital, nenhum dos pais era capaz de deixar Stanley passar as noites sozinho naquele hospital. Por isso, quase todos os dias, um deles passava a noite no hospital com o menino. Grayson e Kyoko iam alternando em quem passava a noite no hospital pois, apesar de ambos quererem estar lá, era muito difícil de dormir confortavelmente numa cadeira de hospital ou numa cama de crianças. Mas sempre que era a morena a dormir no hospital, ela deitava-se na cama com o filho e deixava que ele se encostasse a ela, aconchegando-se com o calor que o corpo da mãe provinha. Kyoko apenas fazia festas no cabelo dele e evitava não chorar ao sentir o corpo antes gorducho do filho a ficar cada vez mais magro.

Com essa simples memória, a mulher voltou a sentir o seu mundo a desabar. Ainda agarrada a Ashton, ela deixou as lágrimas caírem silenciosamente pela sua fase. Mas a dor no seu peito começava a ser demasiado forte para ela aguentar. Com efeito, a morena agarrou-se à camisa de Ashton e soluçou, chorando de forma mais violenta. Depois começou a gritar, sentindo o vazio na barriga a aumentar e a dor no peito a piorar. A sua face estava cheia de lágrimas e muco, e não havia nada que pudesse evitar aquela reação quando tudo o que ela queria era o seu filho de volta.

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não vou mentir, emociono-me bastante a escrever esta história, pois é a mais real que eu alguma vez escrevi e eu só quero devolver o stanley à kyoko e ao grayson e pô-los como uma familia feliz de novo

ily


Blue Memories :: afiOnde histórias criam vida. Descubra agora