d o i s

153 23 2
                                    

Naquela noite, Kyoko voltou a não conseguir adormecer. Quando se levantou da cama de casal e se olhou ao espelho, nem reagiu ao ver as olheiras negras. Nem se dava ao trabalho de as cobrir.

Assim, ela decidiu ir para a gelataria mais cedo que o normal. A mulher costumava ir um pouco antes das quatro, pois antes disso, ela acabaria o trabalho que não tivera tempo de fazer. Mas era um sábado, e ela não tinha nada que fazer senão ver televisão.

A morena vestiu-se e saiu do quarto, passando pelo antigo quarto do filho sem ligar e indo direita ao hall de entrada. Tinha sido muito lentamente, mas Kyoko já tinha passado a fase em que se tem de tirar as coisas dos filho. Ela tivera que o fazer, quer quisesse ou não. Essa era, talvez, a fase mais difícil depois da morte de um filho: ter que aceitar a morte da pessoa que mais amamos e tirar partes dele da nossa casa, enfrentar a realidade de que a criança não vai voltar a brincar com aqueles brinquedos nem que não voltaremos a ir àquele quarto dar um beijo de boa noite ao pequeno. A mulher ainda se lembrava de como o seu coração doía (mesmo fisicamente) quando ela entrou no quarto de Stanley pela primeira vez em dois meses. Felizmente, depois de anos, o quarto não a afetava, mas sim saber que, um dia, teria de deixar de pensar no seu filho todos os dias e continuar a viver uma vida normal.

Kyoko saiu da sua vivenda e entrou no seu Volkswagen. Depois de ligar o mesmo, conduziu durante cinco minutos, até chegar à tal gelataria que estava aberta todos os dias, a todas as horas.

As luzes brilhantes do cartaz da gelataria faziam os olhos habituados ao escuro da mulher fecharem-se por reflexo, mas a senhora entrou no edifício sem prestar muita atenção ao que a rodeava.

Quando entrou, sentou-se na mesa no canto e mais longínqua da porta. Decidiu esperar uns minutos pela chegada de Ashton. No entanto, não demorou muito até o único empregado que lá estava se aproximar dela e perguntar se ela ia pedir. Como não tinha vontade de esperar mais tempo para comer a substância doce, Kyoko pediu um gelado de copo com duas colheres de caramelo.

Assim, a morena teve uma hora a acabar o seu gelado enquanto olhava pela janela da gelataria, à espera de Ashton. No final, o que estava dentro do copo já nem se podia chamar gelado, mas ao menos ainda sabia a caramelo.

"Desculpa ter chegado tão tarde." O homem loiro desculpou-se, poisando o seu gelado na mesa e entregando outro a Kyoko, que aceitou o segundo gelado sem dizer uma palavra. "Hoje ainda consegui adormecer, mas acordei às três e fiquei deitado na cama a olhar para o teto. Não me queria mesmo levantar."

"Eu bem sei o que isso é." Respondeu a mulher. "Acho que a única coisa que me mantém sã é ter estes encontros contigo. Aqui consigo falar dos meus sentimentos, agora no meu escritório ou com a minha família, não consigo."

"Por acaso, comigo não é assim. Sinto-me bastante à vontade perto da minha família. Devem ser as únicas pessoas que não me julgam por ainda estar a sofrer depois de ser traído pela minha namorada."

Mal Ashton acabou a sua frase, ele ouviu um pequeno e baixo riso vindo de Kyoko. Era a primeira vez que ela ria à frente dele, e o riso dela era tão melodioso.

"Que foi?" Ele perguntou.

Kyoko tapou a boca com a mão e continuou a sorrir. "Oh, estava apenas a lembrar-me do quão habituada estou de esperar. Eu esperava tanto pelo Stanley. E pelo Grayson também. Juro-te aqueles dois eram mesmo tal pai tal filho."

Ashton gostava de ver a mulher mais nova a falar tanto do filho como do marido. Sempre que falava deles, ela tinha um pequeno sorriso na cara e os seus olhos brilhavam. Obviamente, os dois eram importantes para ela.

"Eu fazia o mesmo com a Eva." O homem comentou, também a sorrir. "Quando começámos a namorar, ela chegava sempre quinze minutos atrasada aos nossos encontros. Mas ela pedia sempre desculpa e dava-me sempre um beijo, e eu dizia que estava tudo bem."

"Ela deve ser das poucas mulheres que ainda chega atrasada." Kyoko olhou para Ashton. "Ultimamente, as mulheres começam a ser mais práticas que os homens. Eu digo isto porque o Grayson passava trinta minutos a arranjar o cabelo, dez minutos a lavar os dentes, vinte a vestir-se, trinta a comer, e depois ainda punha colónia. De manhã era sempre uma correria para ver quem conseguia arranjar o Stanley e não chegar atrasado ao emprego. Mas valia sempre a pena, pois o pequeno tinha sempre um sorriso desdentado ao olhar ara nós todos apressados."

Sem dar por isso, a mulher já tinha os olhos molhados, mas mantinha o sorriso. Aquelas eram memórias de que ela sentia imensa falta.

"Eu só tinha tempo de preparar o meu filho e o seu pequeno almoço, de me vestir, calçar, pôr perfume, rímel, batom e ir embora. Eu até tomava o pequeno almoço no meu escritório, pois não tinha mesmo tempo." Kyoko acabou o seu gelado e lambeu os lábios, fungando um pouco. "E há tarde era igual. Eu tinha que ficar mais de meia hora à espera que o Stanley se decidi despedir dos seus amigos do jardim de infância e viesse comigo para casa. Ele era um rapaz tão alegre que até as educadoras de infância o paravam a meio caminho para que ele se despedisse delas. E, quando finalmente chegávamos a casa, já estava o pai a fazer o jantar, para que pudéssemos comer às sete e o Stanley pudesse ir para a cama cedo. Mas ele pedia sempre ao pai para brincar e o Grayson não conseguia evitar. Ele punha o filho por cima dos ombros e divertiam-se os dois enquanto o mais velho cozinhava. Acabávamos por jantar mais tarde e eu tinha sempre que me zangar com aquelas duas autênticas crianças. Mas raio, eu amava-os tanto, e ainda amo, que acabava por me juntar a eles e acabávamos a noite com um Grayson em miniatura com os olhos da mãe a dormir entre os pais, invés de estar na sua própria cama."

As lágrimas acabaram por cair e Kyoko escondeu a cara com as mãos, ainda com um sorriso. Era tão bom, mas tão difícil falar daquelas memórias. A mulher gostava tanto de puder trocar aquela noites todas por apenas mais uma com a sua antiga família.

Ashton sabia disso, ele era igual, por isso sentou-se ao lado da morena e abraçou-a, enquanto as suas próprias lágrimas lhe molhavam as bochechas e ele se lembrava das noites que tinha com a ex-namorada.

++

juro, doeu-me tanto o coração ao escrever isto, mas valeu a pena

ao acho que esta vai ser mesmo a minha historia favorita entre todas as quatros

ily

Blue Memories :: afiOnde histórias criam vida. Descubra agora