Segunda chance

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Publicada originalmente em 03/01/2017

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Pergunto a você, caro leitor: Qual a sua primeira lembrança de indignação?

Como foi a primeira vez que você lidou com a crueldade do mundo?

Quando, pela primeira vez, você enxergou que o ser humano vem perdendo sua humanidade?

Uma primeira coisa a ser dita: Minha memória não é das melhores.

A minha lembrança não pode ser considerada a primeira. Talvez eu tivesse outra experiência que honrasse mais com a minha própria pergunta. Mas é isso, como sempre atribuímos muita importância aos números, eu fiquei com "primeira" e não conseguia escrever nada porque não chegava a minha primeira experiência de jeito nenhum. Até que cheguei à conclusão: pode até não ser a primeira, mas não deixa de ser muito importante.

Dizem que a primeira vez a gente nunca esquece, mas bem antecipadamente eu avisei que minha memória não era boa e você continua lendo. Essa primeira lembrança (que eu e você sabemos que não é primeira coisa alguma) não é algo agradável de lembrar. Fico com lágrimas nos olhos e uma revolta que não cabe dentro de mim. Mas as vezes é bom colocar para fora. E esse texto deve fazer isso por mim.

Estou aqui escrevendo e fingindo que não vou enviar ele nunca. Não teria coragem de escrever se fosse de outra maneira. É muito pessoal e não falo desse episódio com ninguém( ninguém quer de fato falar muito sobre isso).

Bem, indo direto as vias de fato, tudo aconteceu em uma noite (não sei em que ano foi- minha memória não é das melhores, lembra?). Estava sentada no sofá da sala, televisão ligada nas alturas e no braço do sofá tinha um prato com umas deliciosas fatias de pizza. Você pode achar a informação do que eu estava comendo um exagero de detalhes da minha parte, mas não é! A questão da pizza vai ser um ponto importante no meu relato. Eis que o telefone toca. Eles sempre tocam nos piores horários. Tipo agora, eu estava comendo minha pizza! Mas dessa vez não era nenhum correio eletrônico oferecendo ômega três. Dessa vez, era uma notícia que jogou um balde de água fria no meu mundinho de conto de fadas.

Não sei quem atendeu, não sei quem me falou, não sei como falou. Só sei que parei de ouvir e só pensava na segunda chance que a vida estava me dando.

A notícia era que minha prima foi assaltada e os assaltantes (queria chama-los por outro nome, mas seria muito ofensivo) não se contentaram em roubar e bateram muito nela. E quando eu digo muito, não é exagero meu. Foi encontrada desmaiada na rua e encaminhada com urgência para o hospital. Passou por algumas cirurgias e ficou um longo período de recuperação. Perdeu muitas aulas, com prejuízos de diversos tipos e não vamos nem entrar na parte do abalo emocional que isso causou, do enorme medo de sair na rua e do fato dos bandidos saírem impunes. Mas lembra da segunda chance que a vida me deu? Pois bem, ela estava viva!

Bem, ainda não contei a parte da pizza. É que eu sou conhecida por ter um amor incondicional por comida (principalmente se for pizza). Mas naquele dia eu lembro (mesmo com minha péssima memória) de cuspir ela no prato. E só pensava que nunca mais na minha vida eu comeria uma pizza se isso fizesse aquele dia ser apagando e minha prima ter chegado em casa como todos os dias: bem.

O que antes era meu prato preferido não descia de maneira alguma. Não conseguia engolir, tornou-se asqueroso. E aí, esse foi o dia em que encontrei em nível total minha indignidade, a primeira vez que eu enxerguei a porcaria que esse mundo é e essa indignidade só cresceu desde então.

O relato em si já deveria ter terminado nesse último parágrafo. Mas a parte que mais me deixa envergonhada e que torna esse texto tão difícil de enviar, é que naquele dia eu tentei escrever. Tentei escrever e tirar esse sentimento ruim de dentro de mim. Enquanto escrevia, me dei conta de que nunca falei para minha prima que amava ela, que ela era importante na minha vida. Prometi que seria a primeira coisa que ia falar quando a encontrasse. Perdi as contas de quantas vezes eu já encontrei com ela e nunca falei.

Só espero que a vida continue me dando segundas chances!

Devaneios em prosaOnde histórias criam vida. Descubra agora