Prólogo

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A atmosfera inconstante do local só servia para tornar o ambiente mais místico e inconstante, afinal de contas, aquele não era um plano físico qualquer. A reunião entre as vinte figuras únicas já tinha se iniciado há tempo, mas a questão principal do debate ainda não tinha sido anunciada pelo deus dos deuses, até aquele momento.

– Após refletir intensamente, decidi acatar à única medida que me pareceu persuasiva o suficiente. – A voz retumbante do anfitrião se destacava em meio ao silêncio. – Devido à descrença crescente daqueles a quais chamamos de humanos, a terceira onda será instaurada!

Um burburinho de conversas começou a crescer no momento, mas o olhar daquele que vos tinha falado manteve-se inalterado enquanto ele continuava.

– Assim, portanto, hoje vos entrego os instrumentos necessários para o seguimento do plano.

Objetos de metal líquido surgiram do chão do local próximos aos pés de cada um dos deuses sentados. Conforme o líquido dourado subia, ele ia tomando formas distintas para combinar com cada ser em sua direção. O ouro formou diversos objetos, agora sólidos, e caiu no colo de seu respectivo representante, vinte artefatos para vinte deuses. Mas o artefato do próprio orador estava encoberto por uma membrana semitransparente que distorcia o objeto ali escondido, assim aquele artefato se tornou uma incógnita.

– Estes instrumentos foram construídos a partir da essência de cada um de vocês, logo eles também possuem os seus poderes, mas o vosso objetivo é encontrar o humano digno de carregar este poder consigo.

Vozes de indignação se elevaram no silêncio deixado após o anúncio, mas o deus dos deuses não se deixou ser rebaixado e, ao se levantar, todos se calaram. Ele buscou o olhar de todos os presentes alertando-os com os olhos que não toleraria mais nenhuma reação do grupo e voltou a se sentar.

– Como regras desse movimento. Assim que o artefato for entregue ao humano vocês não poderão pegá-lo de volta. Caso o humano designado morra, o instrumento esperará em terra até que outro portador o ache e reivindique-o, mas se dentro de quatro luas ele não for reivindicado, o item retornará às suas mãos. Agora formem suas alianças e reflitam cuidadosamente antes de entregar o seu ouro para um qualquer.

Ao terminar o seu discurso, o orador se recostou em sua cadeira desafiando qualquer um a desacatar sua autoridade.

Uma deusa de rosto angelical levantou de seu lugar indo até a cadeira de seu marido ao lado. Os longos fios negros do seu cabelo balançavam ao vento inexistente daquela sala acompanhando o movimento de seu vestido branco bordado com fios que pareciam ter sido tirados das próprias nuvens. O homem em sua frente passou a mão no cabelo prateado antes de se levantar com seu sobretudo negro cobrindo-o dos ombros aos pés e cruzou os dedos com sua mulher puxando-a para um longo beijo. O contato entre os dois só serviu para realçar o contraste entre a linda pele negra do deus do inferno com a bela pele branca da deusa do céu e o brilho das alianças de ambos era a única coisa que fazia aqueles objetos, tão correspondente a cor da pele do próprio dono, se destacar.

Dois seres de aparência andrógenas se encararam em seus lugares antes de se levantarem em sincronia. Um deles usava roupas marrons rasgadas e desbotadas em diversos pontos, enquanto o outro passava a mão sobre um dos seus muitos hematomas e alisava as suas roupas mundanas esquecidas por todos. Os dois entraram em um acordo mudo e seguiram na direção do encapuzado cujo rosto estava tão chupado que a única parte dele que se via parecia como se a pele cobrisse o próprio osso de sua mandíbula. Assim a morte e o esquecimento foram de encontro ao fim.

O deus da matança levantou-se com todos os seus músculos pressionando a roupa que vestia e se dirigiu até o seu parceiro bem vestido que o observava de longe. O referido deus da enganação retirou a metade preta e irada da sua máscara, ficando apenas com a metade branca macabra, e despontou um beijo sobre o olho cego do brutamontes que o abraçou. Como que incentivado pelo ato, o deus quase cego mordeu o lábio inferior de seu namorado esticando-o até ficar roxo. Uma terceira figura se aproximou de olhos fechados e lábios costurados com uma expressão indecifrável, suas mãos estavam enfiadas em dois dos inúmeros bolsos de suas vestes neutras. O deus da enganação pôs a metade faltante da máscara e sussurrou um segredo no ouvido de seu filho que sorriu em resposta para o seu outro pai.

No centro da sala cinco figuras se aproximaram com animação surpreendente, a aura das cinco juntas se uniu em única vibração como se complementassem umas às outras. A deusa dos elfos ajeitou sua tiara dourada, decorada com muitas pedras que mudavam de cor conforme o ponto de vista, sobre os longos cabelos loiros antes de estender a mão para a deusa da floresta que era quase que completamente cobertas por plantas vivas em constante movimento, incluindo um gorro feito de tulipas que servia para aquietar seus curtos cabelos desgrenhados e multicoloridos. Os longos dreadlocks do deus da natureza caia pela lateral de seu ombro cobrindo parte do símbolo de "paz e amor" desenhado em sua camisa tingida enquanto ele tirava uma flauta do seu bolso e rodava ela nos dedos em alta velocidade. A deusa dos halflings parecia ser a mais velha entre aquelas figuras e seu olhar calmante e aquecedor pairava sobre sua cesta de comidas cheia. Por último, a figura séria do deus do sol era o único em todo o ambiente que estava pronto para uma luta com sua armadura dourada tão brilhante quanto o sol e seu olhar alerta que não se fixava em um ponto específico.

Os últimos seis seres do local nem precisaram se encarar para decidir a sua aliança, eles pareciam sempre prontos para se unirem quando o objetivo em comum de todos era a busca pelo ser perfeito. O deus do conhecimento com sua aparência asiática sempre vestido como um sábio, o deus da força cujo bracelete pulsava como se o dragão a qual foi fabricado ainda respirasse dentro daquele amuleto, o deus dos anões que carregava um martelo maior que o próprio, a deusa do ouro que estava sentada sobre o seu baú mágico com seu longo rabo de cavalo trançado com fios de ouro, o deus da viagem cuja aparência era tão inconstante quanto aquele lugar que até sua sexualidade mudava a cada instante e a deusa da justiça que, apesar de cega, parecia saber exatamente por onde estava se movendo.

Portanto, todas as alianças estavam completas. A aliança astral, constituída pela deusa do céu e o deus do inferno. A aliança da morte, formada pelo deus da morte, deus do esquecimento e deus do fim. A aliança da insanidade, composta pelo deus da enganação, deus da matança e deus do segredo. A aliança da vida, estabelecida pela deusa dos elfos, deusa da floresta, deus da natureza, deusa dos halflings e deus do sol. A aliança das virtudes, integrada pelo deus do conhecimento, deus da força, deus dos anões, deusa do ouro, deus da viagem e deusa da justiça. Por fim, a aliança solitária, que não era bem uma aliança, mas o próprio deus dos deuses, que não se uniu a nenhuma delas.

Assim que aquilo tudo foi formado, os deuses se viraram para o seu anfitrião esperando maiores ordens e, com um estalar dos dedos, cada ser naquele ambiente teve uma visão do futuro. Um humano irreconhecível para qualquer um conversando com o próprio deus dos deuses de igual para igual. Ao fim daquela transmissão, a aura de cada indivíduo naquela assembleia se intensificou com o sentimento de dever cumprido e todos se retiraram deixando o deus dos deuses sozinho.

Com um suspiro este também se foi, deixandoapenas a inconstante sala se perder em suas próprias mudanças. 



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