Capítulo VI
Marques já estava trabalhando há dezoito horas ininterruptas. Análises de DNA, identificação de corpos, aperfeiçoamento de técnicas de reconhecimento profundo de retina e, é claro, autópsias. Era legista sênior da Central de Segurança e um dos poucos profissionais no continente que ainda fazia as autópsias como eram feitas há três séculos atrás.
"Máquinas são eficientes demais. Não se envolvem.", costumava dizer.
Estava cansado. Já estava de serviço há dezoito horas. Precisava ir pra casa, dar comida e água de verdade para Igor, seu gato. Todo esse tempo comendo só o que o sintetizador servia não podia ser saudável.
Arrumou suas coisas, pegou seu casaco e dirigiu-se à porta.
Estava praticamente livre quando um sinal sonoro encheu todo o ambiente. Alguém havia chegado. Não era sua responsabilidade, mas aquela maldita curiosidade profissional começou a apitar em seus ouvidos.
" Só uma olhadinha. Cinco minutinhos e já vou embora."
Voltou para seu escritório, jogou a mochila sobre a mesa e dirigiu-se ao morgue.
Era um corredor longo, com macas em ambos os lados. Cada uma dessas baias de trabalho tinha uma iluminação individual,o que dava um certo ar macabro ao ambiente quando apenas uma ou outra estava de serviço altas horas da noite. Hoje, apenas uma estava acesa.
Marques caminhou calmamente pelo corredor até reconhecer Vicente, um dos legistas mais experientes da central, debruçado sobre um corpo feminino.
"Boa noite Vicente."
"Ora! Boa noite Marques. Ainda por aqui?"
"Já estava de saída, aí ouvi você chegando e pimba, fiquei curioso."
Vicente sorriu.
"Não resiste, não é Marques? Sempre procurando algo que não consiga resolver. Bom, não vai ser essa moça aqui."
"Por quê não? Óbvio demais?"
Vicente tirou a manta que cobria corpo, revelando o ferimento que saltava aos olhos.
"Tiro hein? Olha isso, uma Mack .62, plasma a curta distância. O que acha?"
"Sem dúvida é plasma. Mas por que acha que é uma Mack .62? Não te acompanhei nessa parte."
Marques aproximou-se do corpo.
" Está vendo esse padrão, meio estrelado nas bordas do ferimento?"
"Agora estou!" Disse Vicente sorrindo.
"Esse desenho é tipico do redutor de saída de plasma nos canos das Mack. O plasma adquire essa forma por milissegundos depois do tiro, isso explica porque pensei num tiro a curta distância. Essas marcas ficam muito mais evidentes em superfícies sólidas, tipo paredes e tal. Mas se prestar atenção elas também se repetem em corpos humano quando o atirador está próximo."
"Impressionante Marques! Muito bom, muito bom mesmo!"
Marques ficou sem jeito. Nunca soube lidar com elogios. Vicente continuou:
"Está tudo muito bom, tudo muito bem, mas e o calibre? Como sabe que é um .62?"
"O ferimento. Existe mais cauterização do que penetração. Tinha que ser um calibre mais fraco. Pelo diâmetro da queimadura e pelo fato de não ter transpassado o corpo, só pode ser uma .62."
"Agora você está inventando." Disse Vicente rindo.
"Não. É sério! Teste para você ver."
Vicente tocou num visor ao lado cá maca e uma luz verde brilhou embaixo e sobre o corpo.
"Sistema. Vicente Borges, registro 114633, análise balística, por favor. Ignore características do ferimento e determine apenas provável arma utilizada. Iniciar."
O corpo foi rapidamente escaneado e um poucos segundos uma simpática voz feminina se fez ouvir.
"Arma utilizada, Mack Standard. Calibre, .62. Distância provável do disparo..."
"É o bastante sistema. Obrigado."
"Eu devia ter apostado uma cerveja."
"Você não estava de saída, Marques?", disse Vicente rindo.
"Boa noite Vicente."
"Boa noite."
Marques caminhou até a porta de saída, então parou, virou-se e perguntou;
"De quem é o caso, Vicente?"
"Do Carmo." Marques ficou parado por alguns instantes. Devia um milhão de favores para o Carmo e sabia que ele nunca iria cobrar. Enfim, foi até sua sala e conectou-se à rede.
"Carmo. Olá."
"Olá. Quem fala?"
"É o Marques, Carmo, tem um caso seu aqui, está nas mãos do Vicente. Ele é muito bom em anatomia, muito bom mesmo, mas é bem fraquinho com balística. Estava pensando. Quer que eu assuma?"
"Por mim tudo bem. E o Vicente? Não vai chiar?"
"Ele vai me agradecer, isso sim! Só que é o seguinte. Estou aqui há dezoito horas direto. Que urgência preciso nesse corpo?"
"Nada muito urgente. Passei pela cena do crime ontem com o Chaveiro e o que eu precisava no momento estava nos hologramas. Vá descansar e depois você assume. Além do mais não quero encrencas com o Igor."
Marques riu e despediu-se. Caminhou então de volta ao morgue. Vicente ainda não havia começado a autópsia quando Marques chegou.
"Ué?! Tá de volta por que? Esqueceu algo?"
"Vicente, precisamos conversar."
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O Deus da Máquina
Science FictionO policial Carmo Miranda tenta desvendar um assassinato que talvez não seja um assassinato. Romance de ficção científica com a pretensão talvez ingênua de entender o que é "ser humano".