Apenas Outro Dia no Paraíso

14 1 0
                                    

Capítulo V

A arcologia Ruanda era um dos lugares na Terra mais próximos ao conceito de paraíso que o homem poderia chegar.
Uma só construção com proporções inimagináveis onde milhares de pessoas viviam praticamente isoladas do resto mundo.
Em algumas regiões haviam bosques inteiros misturando-se às largas avenidas onde viam-se lojas e luxuosas residências que eram ironicamente chamadas de apartamentos.
Também não era raro ver animais como tigres brancos, leões e lhamas, todos artificiais é claro, passeando calmamente pelas ruas.
Ruanda foi a primeira arcologia da Terra a usar a tecnologia de controle climático.
Carmo, já num dos metrôs suspensos, admirava toda aquela exuberância com um deslumbramento distante.
Chegou enfim ao Octigentésimo nonagésimo quarto andar e caminhou até o "apartamento" onde Chaveirinho o esperava.
"Bom dia Carmo. Você não parece tão mal. Foi I.S. mesmo ou passou noite na gandaia?" Perguntou Chaveiro enquanto os dois caminhavam até a cena do crime.
"Antes fosse noite mal dormida. Pelo menos estaria só com sono."
"Quer um café? Ajuda."
"Você sabe que eu não tomo café."
"Mórmon!"
"Ateu!"
Os dois riram e depois ficaram em silêncio por um instante.
"Jogue fora essa porcaria de indutor. Não vale a pena!"
"Eu joguei, eu joguei."
Entraram no apartamento e a primeira coisa que Carmo notou foi a vista maravilhosa da cidade. As paredes eram de carbono transparente e permitiam se deslumbrar com a paisagem maravilhosa.
"Está muito claro aqui." Resmungou Carmo. "Você já teve acesso às permissões de voz?" Continuou.
"Já. Olha isso Carmo. Transparência, trinta e cinco por cento."
Imediatamente as paredes escureceram.
"Caramba!" Surpreendeu-se Carmo.
"Rápido né? Quanto demora na sua casa?"
"Uns trinta, quarenta segundos até."
"O dinheiro está nos detalhes meu velho."
"Acessou as câmeras até o portão? Checou a rotina dela?"
"Sim. E as do metrô externo também. Nada demais. Um dia normal. Saiu as nove da manhã, deu umas voltas pelo centro velho. Foi até o Museu de Arte, ficou lá até o meio dia. Veio para o centro novo. Comprou umas roupas. Lá pelas cinco e meia pegou o metrô de volta a Ruanda. No metrô conversou com um cara e ele deu alguma coisa a ela."
"Deu algo a ela? Identificaram o cara?"
"Sim. Já está na central. Estão tomando o depoimento dele."
"Hmm. E o que ele deu a ela?"
"Parecia um tablet, mas os que encontramos aqui não tem as mesmas dimensões do que está nas imagens."
"Jogue o arquivo de imagem do metrô no minha rede."
Carmo então pode ver, nítido em sua frente, as imagens das câmeras de segurança do metrô externo.
"É a garota de cabelo preto?"
"Sim. Ela mesma."
"Não é um tablet! É um livro!"
"'Livro'?!"
"Sim. Vamos dar uma olhada nesse H.T. de uma vez."
Estavam numa sala ampla e luxuosamente decorada.
No meio da sala havia um pequeno cubo negro, mais ou menos com cinco centímetros de altura por cinco de comprimento. Era o dispositivo H.T..
"Ativar H.T.." Disse Chaveiro sem cerimônia e todo aquele cômodo mudou de disposição. Um corpo de mulher apareceu deitado no sofá com uma das mãos tocando o chão. Estava de barriga pra cima e seu olhar vazio se dirigia para o teto. No chão haviam algumas poucas gotas de sangue.
Carmo olhou atentamente aquele cenário, tentando perceber como aquela cena tinha chegado aquela configuração. Deu dois passos e agachou-se próximo ao holograma do corpo. Era uma garota bonita. Jovem. Vinte, talvez vinte e dois anos. Havia apenas um ferimento, mas esse saltava aos olhos por ser em seu peito e pela camiseta branca que ela usava.
"Estranho." Disse Carmo.
"O que?"
"O ferimento está cauterizado, mas tem algumas gotas de sangue no chão."
"Talvez o sangue não seja dela."
"É, talvez. Quanto da porta até o sofá? Seis, sete metros?"
"Mais ou menos isso. Por quê?"
"Um tiro de pistola de plasma a essa distância cauteriza o ferimento instantaneamente. Não haveria sangue. Nem uma gota sequer."
"Você nem ouviu o que eu disse. Talvez o sangue não seja dela."
"Não há sinal nenhum de luta. Nada fora do lugar."
"O assassino pode ter arrumado a sala, ora bolas."
"É. Podia. O Marques já retornou? Alguma resposta dele?"
"Ainda não. Sabe como ele é metódico. Não vai atender chamada nenhuma enquanto não terminar."
"Peça um comparativo entre o sangue da vítima com as gotas no chão."
"Como se precisasse." Disse Chaveiro com desdém.
Carmo sorriu. Sabia da qualidade do trabalho de Marques. Deu uma olhada embaixo de uma cristaleira ao lado do sofá e lá estava. Esticou a mão e pegou o livro. Desanimou-se ao perceber que este também era projetado pelo H.T., e não algo que tivesse passado pela perícia.
Desse modo Carmo só podia manusear o que efetivamente houvesse sido escaneado e ele duvidava que tivessem tido a preocupação de folhear o livro.
Estava certo. Manuseando o holograma podia ver apenas a capa e a quarta capa. Não havia nenhuma inscrição nem nada que pudesse ser considerado uma pista. Apenas a lombada, em sua parte superior, estava cauterizada, o que demonstrava que ela segurava o livro na altura do peito quando foi atingida. Não houve luta. A garota havia sido pega de surpresa ou o assassino era alguém próximo da vítima, uma pessoa da qual ela não desconfiaria.
"Conhece esse livro?" Perguntou Chaveiro.
"Conheço. Muito bom. Você deveria ler."
"Tem o filme?"
"Tem. Uma merda!"
"Vou ver o filme."
Carmo suspirou e balançou a cabeça desanimado. Quando vão aprender que filme nenhum faz jus ao livro?
Levantou-se e olhou de novo para a garota. Depois lentamente olhou em volta. Finalmente voltou-se para Chaveiro.
"Certo. Não há mais nada para ser feito aqui. Vamos até a central conversar com esse garoto que deu o livro a ela e depois falar com o Marques."
Carmo soltou o holograma do livro que automaticamente voltou a sua posição original, embaixo da cristaleira.
"Desativar H.T.." Disse Chaveirinho ao mesmo tempo em que recolhia o cubo do chão.
Carmo virou-se para sair e então estacou.
Estava lá. Na parede, pendurado. A resposta para a pergunta que o havia atormentado durante a noite e boa parte do dia. Um pôster de cinema, bonito, onde um andróide com contornos femininos olhava diretamente para ele.
"Que foi?" Perguntou Chaveiro.
"Metrópolis."
"O que?"
"Nada." Respondeu Carmo com um sorriso no rosto.
O dia definitivamente estava melhorando.

O Deus da MáquinaOnde histórias criam vida. Descubra agora