Capítulo XVI
Alan era um cara grande. Mais de dois metros de puro músculo e pouca simpatia. Encontraram-se num bar bem arrumado e limpo nas redondezas de Ruanda. Pegaram uma mesa do lado de fora, num parklet agradável e arborizado.
"Você sabe que eu só aceitei falar com vocês porque o Jesus pediu, não é?" Disse do modo mais desagradável possível.
"Sei disso Alan, e agradeço muito sua colaboração. E então, o que pode nos dizer sobre a garota da foto?"
Alan pensou durante um momento. Parecia realmente inseguro de dividir informações com policiais, mesmo que não fossem da narcóticos, mesmo a pedido de Jesus. Enfim falou.
"Eles, a garota e o rapaz, não faltavam uma semana sequer. Acho que compravam para as notívagas."
"Notívagas?" Perguntou Chaveiro.
"São festas induzidas por I.S.. Programam os indutores para funcionar em party, tomam uma ou duas Pifels com absinto e conectam-se. Ficam lá um ou dois dias. O final de semana todo geralmente. O Pifel potencializa os efeitos do indutor e praticamente anula o EVRO."
Carmo achou essa informação útil e inútil ao mesmo tempo. Pensou por um segundo e perguntou:
"Por quê acredita que compravam para as notívagas."
"Compravam apenas as sextas-feiras. Nunca vieram outro dia. Logo imaginei que fosse para as notívagas."
"Faz sentido. Sabe o nome dela ou do garoto que a acompanhava?"
"Não. Pagavam apenas em dinheiro vivo, coisa bem rara hoje em dia. E o rapaz, bem, o rapaz nunca abriu a boca."
A tatuagem mimética no braço de Alan, um dragão chinês, movia-se sem parar. Devia ter custado bem caro, já que era bem grande e os movimentos eram extremamente fluidos.
"Sabe para para onde iam, depois de comprar seu produto?"
"De volta a Ruanda, sem dúvida. Olha, isso é tudo que vão ter de mim! Não posso perder meu dia inteiro com vocês, seja a pedido de Jesus ou não!"
"Seu tempo não é seu Alan. Enquanto eu precisar, enquanto eu tiver uma pergunta sequer pra fazer, sua vida não te pertence."
A voz de Carmo era pausada, calma, assustadora. Chaveiro detestava quando ele fazia aquilo, porque nesses momentos algo escuro, algo ruim, brotava da alma de Carmo e não era algo agradável de se ver ou ouvir.
"Jesus me ligou hoje. Umas duas horas antes de você chegar. Me disse que você é casca grossa, apesar de não parecer. Me contou a história com Lúcio. Como você acabou com ele sem ao menos piscar. Só que eu não sou Lúcio, então não tente me intimidar com sua cara de mau, Carmo. Isso não vai funcionar comigo."
Dava para perceber o senso de satisfação no rosto de Alan. Não era um cara fácil de se intimidar. O problema de Alan, era que Carmo também não era esse tipo.
"Me diz aí Alan. O que compra basicamente de Jesus. Qual seu mercado fora Pifels?"
"Não existe mercado em Ruanda fora Pifels. Qual a jogada Carmo? Vai intimar o Jesus pra ele parar de vender para mim? Tem noção de quanto compro semanalmente? Sou seu maior comprador. Ruanda é a gansa dos ovos de ouro pro Jesus nessa parte do continente. Jogada errada Carmo."
"Meu pedido pra Jesus foi apenas para marcar o encontro. Nunca prometi nada para ele. Mas mesmo assim eu jamais prenderia você. Sei as consequências para Jesus se eu fizesse isso e sei que a coisa não se resume a dinheiro."
"Você é um rapaz experto, oficial."
"Sabe o problema com Pifels hoje em dia, Alan?"
Ele não respondeu. Apenas olhou de Carmo para Chaveiro.
"Nano receptores."
"Nano receptores?"
"Sim. Aquela pequena maravilha tecnológica que existe em cada Pifel que você vende. Aquele truquezinho que faz com que o cérebro de seus clientes, seus receptores cerebrais para ser mais exato, simplesmente não reconheçam um Pifel comprado de um concorrente. Sabe do que estou falando Alan?"
"Sim...Sei. E daí?"
"Toda peça de tecnologia pode ser hackeada Alan. Qualquer uma. Até mesmo os nano receptores em seu estoque de Pifels."
"E daí?"
"E daí que se eu quiser eu invado os nano receptores do seu estoque de Pifels e reconfiguro os nano receptores para que ela digam ao cérebro de seus clientes que eles estão comendo merda quando tomarem seu produto. O que acha disso Alan?"
"Está blefando e esse é um jogo perigoso Carmo."
"Estou nunca blefo. Pergunte ao Lúcio."
Havia alguma indecisão em Alan e Carmo sabia disso. Hora de jogar duro.
"Tem um Pifel aí Alan?"
Alan não se moveu.
"Ora, um bom vendedor sempre tem uma amostra de seu produto, não é verdade?"
A contragosto, Alan jogou um pequeno comprimido rosa com uma flor gravada sobre a mesa. Carmo, retirou um pequeno dispositivo negro de seu bolso e digitou alguns códigos. Um pequeno flash azul piscou na ponta do aparelho.
"Está feito Alan."
"Espera que eu acredite em você?"
"Tudo o que precisa fazer é tomar o Pifel. Se eu estiver mentindo o pior que pode acontecer é você ficar muito feliz, não é?"
Com um gesto bruto, Alan pegou o comprimido de cima da mesa e o engoliu. Durante um ou dois minutos olhou direto para Carmo, com um ar extremamente desafiador e. de deboche. Então, aos poucos, sua fisionomia foi se transformando, até se tornar uma máscara retorcida de nojo e asco. Alan então começou a vomitar compulsivamente. Isso durou apenas alguns minutos. Quanto voltou a sí, sua expressão era de terror.
"Você vai fazer o seguinte Alan. Vai descobrir quem é esse cara, onde ele mora, vai descobrir até se ele gosta de dormir de luz acesa ou apagada, entendeu? Porque se sábado a noite eu não tiver repostas, seu estoque todo vai ser literalmente, um monte de merda em comprimidos!"
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O Deus da Máquina
Ficção CientíficaO policial Carmo Miranda tenta desvendar um assassinato que talvez não seja um assassinato. Romance de ficção científica com a pretensão talvez ingênua de entender o que é "ser humano".