O Fio da Meada

7 1 0
                                    

Capítulo XX

Por mais que Carmo tentasse impedir que o caso chegasse até a imprensa, após a confissão de Alexandre não houve muito mais que ele pudesse fazer. A central de segurança podia alegar sigilo enquanto sua divulgação de algum modo pudesse atrapalhar a investigação, e esse não era mais o caso.
Alexandre, assassino confesso de Eva, estava preso, iria a julgamento e sua história havia incendiado todos os meios de comunicação e as redes. 
Em programas de entrevistas, pessoas defendiam Alexandre, alegando que ciente ou não da natureza de Eva, ele havia de qualquer modo atirado numa máquina, e isso não poderia ser considerado um crime.  Pelo menos não um crime grave como assassinato. No máximo dano a propriedade.
Outros grupos defendiam que Alexandre deveria sim ser preso já que ele havia atirado em Eva convencido de que se tratava e outro ser humano e portanto nada o impediria de matar uma pessoa "de verdade". Além, é claro, de lembrarem com frequência irritante da Lei de Intenção.
Havia também, além desses dois grupos, os bandos de malucos que sempre apareciam do nada quando algo desse porte acontecia. E aí tínhamos os defensores dos direitos cibernéticos, os adoradores da Sagrada Eva Futura, que segundo diziam era a "reencarnação" de Maria, mãe de Jesus, e não vamos esquecer dos que viam em Alexandre um herói que veio libertar a raça humana de sua dependência das máquinas e portanto o fato de ele estar preso se configurava numa grande injustiça.
Carmo, na sala de sua casa, passeava pelos canais de notícias e pela rede, lendo e ouvindo todas essas opiniões tão diversas a respeito do assunto. Não deu entrevistas, não comentou o caso, em resumo, não se pronunciou, embora seu nome, para o bem ou para o mal, sempre fosse citado.
No que dizia respeito a Carmo, a investigação estava encerrada apenas para a opinião pública. Enquanto não esclarecesse quem havia criado Eva e com que intenção há havia colocado na sociedade como um humano comum, nada estaria terminado. Tinha pontas soltas, e isso era óbvio para ele, mas ainda não sabia exatamente onde encontra-las.
PING!
Carmo não estava atendendo nenhuma ligação, pelo menos não nos últimos dois dias, mas esse era o pingo personalizado do Marques. Só ele ainda usava aquele tom estridente e irritante.
"Olá Marques."
"Olá ermitão. Desça o elevador. Estou aqui na entrada."
"Está sozinho?"
"Com o Chaveiro."
Carmo ordenou a I.A. de seu apartamento que liberasse a entrada dos dois amigos.  Poucos minutos depois, estavam sentados na cozinha, beliscando alguns salgados, bebendo cerveja, sem álcool para Carmo, e tentando entender as reações do mundo ao caso de Eva. Dos três amigos, apenas Chaveiro não se pronunciava. Bebia e comia, quieto e pensativo.
"Andei fazendo umas ligações Carmo. Velhos colegas de faculdade. Acho que consegui uma ou outra coisa." Disse Marques.
"Por exemplo?"
"Esse cara, Leandro, estudou na mesma época que eu. Só que ele fez cibernética e eu medicina. Costumávamos nos encontrar num boteco que tinha lá por perto e acabamos virando amigos. O cara é um gênio, Carmo. Tinha umas idéias muito a frente do seu tempo."
"E o que ele tem para nós?"
"Bom, não precisa ser muito esperto para sacar que essa história toda atiçou o pessoal dessa área, né? Pois então, ele foi chamado para fazer a recuperação de memória profunda, seja lá que diabos é isso, de uma certa amiga nossa."
"Mas você disse que era impossível recuperar os dados, Marques!"
"Ao que parece pro Leandro é bem possível, já que ele aceitou o convite."
"E quem exatamente o convidou?"
"Uma tal de Villiers Cibernética. Andei dando uma pesquisa. Os caras são grandes, muito grandes, mas estão sempre bancando empresas menores e não dão as caras. Ficam sempre nos bastidores, entendeu?"
"Sim."
"Para você ter uma ideia, sabe o projeto de I.A. médica da Aleph? Pois é, todas as patentes e projetos são deles. A Aleph só colocou o nome."
"Caramba. São maiores que a Aleph?!"
"Põem a Aleph no chinelo."
"Acha que consegue marcar um encontro com esse amigo seu?"
"Nem precisava pedir. Ele está louco para conhecer você!"
"Eu?! Por quê?"
"Você está brincando Carmo? Você é o herói do momento! Uma celebridade da rede!"
Carmo suspirou desanimado enquanto Marques ria. Chaveiro não se manifestava. 
"Qual o problema Chaveiro? Está quieto desde a hora que te peguei."
"Estava pensando aqui comigo, Marques. Um troço meio assustador até."
"E no que exatamente estava pensando?"
Chaveiro hesitou. Parecia confuso com algumas de suas próprias ideias.
"Desenbucha Paulo." Emendou Carmo.
"Bom...Pensem comigo. Essa garota, essa Eva, morou quatro anos em Ruanda. Ela saia, cruzava com as pessoas na rua, usava metrô, fazia compras, e até comprava drogas com a porra de um namorado!"
"Sim, e daí?"
"E mesmo com toda essa exposição ninguém nunca suspeitou da verdadeira natureza dela."
Carmo e Marques ficaram em silêncio. Começaram a perceber onde Chaveiro queria chegar. Ele então continuou:
"Quem pode afirmar daqui pra frente, com absoluta certeza, que seu vizinho, sua professora de tênis, o cara bonitão na estação de metrô, a garota com que você está saindo, enfim, qualquer um, é realmente quem diz ser!"
Carmo e Marques não responderam. Não sabiam o que responder. Mas Chaveiro realmente estava certo. Esse pensamento era assustador.

O Deus da MáquinaOnde histórias criam vida. Descubra agora