Capítulo XV
Carmo dormiu por quase dez horas. Foi um sono sem sonhos, reparador.
Chaveiro já havia ligado uma dezena de vezes e Carmo não ouviu sequer uma delas. Sentia-se renovado.
Tomou um banho demorado e comeu duas tigelas com leite, cereais e uma porção de frutas picadas. Não ligou a televisão. Não queria saber de notícias. Ao invés disso colocou uma seleção de músicas e esqueceu do caso por algumas horas.
Já de saída, no elevador, mais um chamado de Chaveiro.
"Alô."
"Puta que o pariu Carmo, onde você se meteu?!"
"Estava descansando Chaveiro.Passei a madrugada acordado."
"Onde se meteu? Fiquei preocupado cara!"
" Fui conversar com Jesus. Tirar umas dúvidas."
"Não acredito! Carmo, o cara é um traficante! Você ainda vai se prejudicar com essa história de amizade com..."
"Sabia que a andróide tinha Pifels nos seus pertences?"
Silêncio.
"Pois é. Agora Chaveiro, me diga por que diabos uma andróide compraria Pifels?"
"Não sei cara,talvez fosse para outra pessoa."
"Outra pessoa, como um namorado por exemplo?"
Chaveiro riu.
"Estou falando sério. Ela tinha um namorado. Ou mesmo se não for um namorado, é alguém que a acompanhava sempre que ela ia comprar Pifels. Precisamos descobrir que é esse cara Chaveiro!"
"Quem é o fornecedor?"
"Um tal de Alan de Ruanda. Jesus arranjou um encontro com esse cara. Quer vir comigo ou não?"
"Sim. Vou sim. Te encontro onde?"
"Na estação do expresso, em Ruanda. Sabe aquela padaria que tem lá dentro? Uma com a fachada azul?"
"Sei. Do seu Antônio. Sabia que ele é nascido nas colônias? Só não lembro se é dia lua ou Marte. Que horas te encontro?"
"Estou saindo. Daqui uma hora me encontre lá, beleza?"
"Combinado."
Carmo caminhou até a estação de metrô ao lado de sua casa e deixou o expresso passar. Não queria que o dia corresse. Podia deixar o Chaveiro esperar um pouco.
Quando o comum parou e abriu suas portas Carmo entrou. Não se sentou em nenhum dos lugares disponíveis. Decidiu caminhar pelos vagões. Olhar as pessoas.
No terceiro vagão, surpresa. Sentado num canto, com a cara enfiada num livro, estava Fábio. Carmo aproximou-se do garoto e sentou-se ao seu lado.
"O que está lendo, rapaz?"
Fábio suspirou desanimado e quando virou o rosto para responder, estacou. Ficou pálido, branco como cera, e arregalou os olhos como um aiai.
"Senhor, senhor Carmo. O que eu fiz? Por que o senhor está aqui, o que houve?"
"Calma Fábio. Não precisa se alarmar. Estou indo pra Ruanda e coincidiu de nos encontrarmos. Você está limpo."
O garoto suspirou, mas não parecia totalmente convencido das palavras de Carmo.
"Que alívio senhor. Achei que ia me prender ou algo assim. Como está o caso senhor? Descobriu quem matou a moça?"
"Estamos trabalhando nisso. E aí, não me respondeu ainda que livro está lendo."
"O signo dos quatro." Respondeu Fábio, já um pouco mais à vontade.
"Sherlock Holmes? Legal! É um grande personagem."
"É sim. Gosto muito da personalidade dele. Assim, um tanto desconectado do mundo e das convenções. Esse é seu maior charme na minha opinião."
"O signo dos quatro é primeiro, não é?"
"Sim. É onde Holmes e Watson se conhecem."
Ficaram em silêncio por alguns momentos até que Carmo disse:
"Sabe o que mais me impressiona nos livros de Sherlock Holmes? Foram escritos no século dezenove e ainda assim é impressionante ler qualquer um deles."
"Bons livros são sempre atuais senhor Carmo. Mas acho que o que mais atrai as pessoas é o fato de Holmes sempre, ou quase sempre..."
"Adler."
"Pois é. Bem, quase sempre saber o que fazer. Apenas com seu intelecto destruir o mal. Isso é realmente impressionante."
"Pena que é ficção." Disse Carmo, desanimado.
Ficaram de silêncio até a estação onde Carmo iria descer.
Despediram-se com um aperto rápido de mãos e algumas palavras atropeladas.
Já na estação, Carmo percebeu que ainda estava com fome. Hora de ir até a padaria do seu Antônio e pedir um pingado e dois pães. É, era Mórmon sim, mas um pingo de café não era o fim do mundo.
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O Deus da Máquina
Fiksi IlmiahO policial Carmo Miranda tenta desvendar um assassinato que talvez não seja um assassinato. Romance de ficção científica com a pretensão talvez ingênua de entender o que é "ser humano".