Capítulo XXIII
Quando chegou nas mansões, Chaveiro ainda não estava lá. Era cedo ainda. Dez e vinte. Olhou em volta e notou que aquela região não era tão ruim como o resto do centro velho. Era bem iluminada, os jardins eram bem cuidados e as ruas limpas. Não havia pichações nos muros e não havia letreiros gigantes encobrindo o céu e a paisagem. Passava a impressão que todo aquele lugar havia parado no tempo, congelado cinquenta anos no passado.
Havia um pequeno bar na esquina. Dali tinha uma visão clara da casa de Leandro. Decidiu comer algo enquanto esperava Chaveiro.
"Bom dia."
"Bom dia senhor. O que vai ser hoje?"
"Um pingado, com pouco café e dois pães com manteiga."
"UM PINGADO BRANQUELO E DOIS PÃES COM GRAXA!" Gritou o homem para alguém nos fundos do bar. Carmo achou aquilo extremamente divertido. Era o tipo de coisas que só se via no Centro Velho. Além do comportamento inusitado, ainda existia o fato de estar sendo atendido por pessoas de carne e osso e não por I.A.s, sintetizadores e esteiras.
Comeu e achou tudo muito bom e barato, absurdamente barato.
"Posso ficar um pouco por aqui? Estou esperando um amigo."
"Fique a vontade. Se precisar de mais alguma coisa, é só gritar."
Carmo riu. Ia sentir falta de um lugar desses lá nas colônias. Se morasse perto de um bar ou padaria desse tipo, não tomaria café da manhã em casa um dia sequer.
Ficou ali mais ou menos uma hora, até que avistou Chaveiro chegando no portão da casa de Leandro. Agradeceu a gentileza ao dono do bar e saiu.
"Chaveiro! Aqui!"
Chaveiro virou-se e acenou.
" Muito cedo ainda Carmo?"
"Não. Vamos terminar logo com isso."
Carmo falou com a I.A. da mansão mas não obteve resposta. Tentou de novo e mais uma vez, nada. Achou estranho e um pressentimento ruim começou a tomar conta de seu peito.
"Tem algo errado aqui Chaveiro. Vamos acessar. "
Carmo entrou em contato com a central de segurança e solicitou que a I.A. do endereço onde se encontrava fosse liberada. Esse era um privilégio extremamente útil dos policiais, paramédicos e bombeiros.
Em poucos segundos o portão abriu e Carmo e Chaveiro entraram. O jardim era bem cuidado e uma calçada de pedras douradas levava até a porta da casa. Carmo sacou sua arma e Chaveiro o imitou. Abriram lentamente a porta e todo o ambiente estava escuro. Atravessaram a grande sala de entrada e saíram num salão com uma luxuosa escadaria. Subiram passo a passo até chegarem em um corredor com as paredes dos dois lados tomadas de quadros. No fim do corredor, uma grande porta dupla. Carmo faz sinal para Chaveiro ficar ali. Ele ia entrar no quarto. Tocou a maçaneta e a porta abriu. Estava apenas encostada. Carmo entrou cautelosamente e pediu que a I.A. acendesse as luzes.
O sangue de Carmo congelou em suas veias.
O quarto, as paredes, o chão,os móveis, todo aquele cômodo estava salpicado com sangue. Sobre a cama, o corpo de um homem, ensanguentado dos pés à cabeça. Carmo deu dois passos para trás, em direção a porta. Sua mão tremia com o peso da arma.
"CHAVEIRO! VEM AQUI, RÁPIDO!"
Chaveiro correu até onde o amigo estava e assim que entrou no quarto, estacou, petrificado com a cena.
"Meu Deus..." Sussurrou.
Carmo caminhou até o corpo. Aparentemente tinha sido baleado e tido a garganta cortada. Alguém ali estava com muito, muito ódio.
"Será que esse era o Leandro?" Perguntou Chaveiro com a voz ainda fraca.
Uma voz firme, porém calma, vinda das costas dos dois policiais respondeu a essa pergunta.
"Sim policial Paulo. Esse é Leandro Alves."
Carmo e Chaveiro viraram-se no mesmo instante, apontando suas armas para a figura que calmante entrava no recinto.
"Creio que apresentações são desnecessárias, já que não sou um estranho a nenhum dos dois."
"Joaquim Filho?! Que diabos está fazendo aqui?!"
"Trago as respostas que tanto procura senhor Carmo, embora acredite que sua vida seria bem melhor sem elas. Não há necessidade de armas."
"Leandro discorda da sua afirmação, senhor Joaquim."
"Leandro foi um caso de necessidade extrema. Uma situação onde a força letal foi um elemento impossível de descartar. Entendam, o homem era um chantagista."
Carmo não se moveu.
"Mas não é do finado senhor Leandro que vim falar, e sim do senhor. O senhor é um bom homem. Não queremos de modo algum prejudica-lo e por isso, por percebermos que o senhor busca apenas a verdade, eu vim até aqui lhe propor um acordo."
"Suborno de novo senhor Joaquim? Já tentou isso ontem e viu os resultados. Por quê insistir?"
"Não é um suborno. Repito, é um acordo. Ofereço ao senhor a verdade, toda a verdade, e o senhor em troca realiza seu sonho."
"Como é?!"
"Toda a verdade e logo depois o senhor se muda para lua, para as colônias. Nova Campinas se não me engano, e toca sua vida calmamente em sua livraria."
"Como você sabia? Apenas...?"
Carmo olhou para Chaveiro.
"Não tome conclusões precipitadas senhor Carmo. Lembre-se que disse que sua vida seria bem melhor sem a verdade? Não estava mentindo quando disse isso. Mas ainda posso fazer algo pelo senhor. Vá para as colônias, toque seu negócio e esqueça tudo que foi dito nesse quarto até agora, ou continuamos com isso e a verdade, o que tenho para lhe contar, vai virar sua vida de cabeça para baixo. O que decide senhor Carmo?"
"Por quê tanta generosidade Joaquim. Pelo que fiquei sabendo a Villiers é gigantesca. Podia interferir nesse caso quando bem quiser e arquivar tudo como bem entender! Qual o motivo de toda essa consideração comigo?"
"Senhor Carmo, a Villiers lhe deve muito. Estamos em dívida com o senhor há pelo menos trinta anos!"
"O que está dizendo homem?!"
"Então está decidido. Se é a verdade que quer..."
"É a verdade que eu quero."
"Que assim seja."
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O Deus da Máquina
Ficção CientíficaO policial Carmo Miranda tenta desvendar um assassinato que talvez não seja um assassinato. Romance de ficção científica com a pretensão talvez ingênua de entender o que é "ser humano".