Crocodilia

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Era final de setembro. A primavera mal havia começado, e Pâmela já ansiava por uma mudança. Seus cabelos, antes castanhos claros, agora tinham uma cor alaranjada intensa, que combinava com seus olhos verdes esmeralda. Essa mudança era a esperança que ela carregava dentro de si.

No entanto, a novidade trouxe apenas elogios de suas amigas, colegas de classe e trabalho, além de olhares de reprovação de sua família e de seu namorado. Nada mais parecia diferente, e isso a consumia por dentro.

Saía do trabalho (ou, como preferia chamá-lo: inferno) às 18 horas. Detestava ser operadora de telemarketing, mas era um mal necessário. Sua família precisava de dinheiro. Pegava um ônibus e chegava à faculdade já com a aula em andamento. Estava no penúltimo ano e, apesar de gostar do que cursava, não sabia se aquilo lhe garantiria um futuro.

Sentava-se sempre na mesma carteira, conversava com as mesmas pessoas e ouvia os professores repetirem as mesmas coisas. No intervalo, comia os mesmos lanches, falava dos mesmos assuntos e, ao ir embora, tomava sempre o mesmo ônibus.

Exceto às sextas-feiras, como naquela, quando saía para beber com as amigas. Carolina e Elaine: uma mais tímida e séria, a outra mais extrovertida e desinibida. Apesar de não confiar plenamente nas duas, Pâmela esperava que pudessem ser verdadeiras companheiras.

Beberam bastante naquela noite: whisky, caipirinha, vinho, chopp, vodka... O resultado foi que precisaram chamar um táxi para Elaine, enquanto gargalhavam alto sobre algo aleatório. Apesar da monotonia frequente, Pâmela considerava esses momentos um dos mais divertidos de sua semana.

Tomou um ônibus com Carolina, já que eram praticamente vizinhas; Carolina morava três casas depois da sua. Durante o trajeto, a morena adormeceu, encostando-se em seu ombro. Pâmela sorriu com isso.

Aproveitando a solidão, observou a rua pela janela do ônibus, atentando aos detalhes, algo que ela tinha um talento natural para fazer. Estava exausta, mas se forçava a ficar acordada para não perder seu ponto.

Quase cochilava quando o ônibus parou no farol. Foi quando viu uma cena horripilante: um homem, usando uma máscara e um colete com uma caveira desenhada, enforcava dois indivíduos com as próprias mãos. Em seguida, chocou suas cabeças e os jogou no chão, atirando logo depois.

O veículo voltou a se mover. Olhou ao redor, assustada. Só Carolina e ela estavam sentadas no fundo, além do motorista, que provavelmente não havia visto a brutalidade. Pâmela sacudiu a cabeça, tentando convencer-se de que era apenas fruto de sua imaginação. No entanto, a visão a perturbou até chegar ao seu destino.

Como de costume, entrou em casa com cuidado. Seus pais já estavam dormindo, trabalhando no dia seguinte. Era raro encontrá-los durante a semana, e o domingo era o único dia em que conseguiam se ver, mesmo morando na mesma casa.

Foi para seu quarto, trocou-se e deitou-se. No entanto, a imagem da crueldade que havia testemunhado continuava a assombrá-la. Não era católica praticante, mas rezou alguns "Pai-Nossos" e "Ave-Marias" na tentativa de adormecer. Sem sucesso.

Após alguns cochilos, permaneceu acordada boa parte da noite. Ouviu um murmúrio vindo da cozinha e, ao olhar no relógio, viu que era 05h00. Provavelmente seus pais haviam acabado de se levantar para o trabalho.

Chegou à mesa do café e os viu recebê-la com sorrisos, contentes. Beijaram-na e abraçaram-na, como se não a vissem há tempos.

- Meu amor, é tão raro te vermos acordada! - exclamou sua mãe.

- Acordou cedo hoje. Vai sair com o Daniel? - perguntou seu pai, puxando uma cadeira ao seu lado para que se sentasse.

- Vou sair mais tarde. Na verdade, não consegui dormir, estava preocupada com algumas coisas... - mentiu, enquanto cortava um pão e passava margarina.

- Que horror! Olha o que esse homem fez! - bradou sua mãe, mostrando a tela do celular para o pai, que arregalou os olhos e murmurou um "Misericórdia!".

- O que estão vendo? - perguntou Pâmela, tentando puxar um pouco de atenção para si.

- O tal justiceiro que tem matado várias pessoas na cidade chegou à nossa região e matou dois homens com um tiro na cabeça. - Seu pai disse, e Pâmela engasgou-se com o café que acabara de tomar.

Mais uma vez, o flashback da noite anterior a aterrorizou.

- Filha, o que foi? - a mãe levantou-se preocupada, dando-lhe tapinhas nas costas. - Olha só que assunto horrível para falarmos na mesa do café, hein, Fábio! - O pai deu de ombros e continuou a ler a matéria.

- Aqui ainda diz que não conseguiram descobrir como esse tal justiceiro conseguiu essas armas. Que horror! - o pai continuava a comentar, enquanto Pâmela tentava se recompor. - Mesmo que ele esteja matando bandidos, esse cara também é um criminoso. Deveria ser punido!

- Só Deus pode tirar vidas! - a mãe fez o sinal da cruz.

Terminaram de comer, enquanto os pais conversavam sobre trabalho. Pâmela manteve-se em silêncio, seus pensamentos fixos no episódio bárbaro. Recebeu um beijo na testa e viu-os sair, enquanto ela tentava dormir um pouco.

Finalmente, conseguiu dormir por algumas horas.

Cerca de três horas depois, levantou-se, tomou banho e se preparou para encontrar seu namorado. Ao trancar o portão e se virar para a rua, viu uma movimentação estranha de um caminhão trazendo móveis. Finalmente, a casa da frente seria vendida, depois de tanto tempo.

Logo, um carro preto com vidros escuros encostou atrás dela. Dele saiu um homem charmoso, aparentando estar na meia-idade. Tinha cabelos lisos e médios, barba bem feita, usava óculos escuros e uma roupa social. Olhou em sua direção, tirou os óculos e acenou com a cabeça, sorrindo em seguida.

Lembrou-se mais uma vez da cena do justiceiro. Não conseguiu corresponder ao cumprimento, e apressou-se para seguir seu caminho.

Chegou ao ponto de ônibus, viu seu ônibus se aproximar e deu sinal. Desceu pouco tempo depois, em frente ao shopping. Suspendeu-se ao ver duas ligações perdidas de Daniel. O ciúme de Daniel a incomodava às vezes.

Finalmente encontrou Daniel. Ouviu-o contar tudo sobre sua semana no trabalho e na faculdade. Seu ego era tão grande que parecia não caber naquela praça de alimentação. Pâmela estava distante, seu pensamento voando entre o justiceiro e o charmoso novo vizinho. Deixou que Daniel falasse sozinho, sem se importar com quantas metas havia batido ou quantos protótipos e maquetes havia feito.

Notando sua falta de atenção, Daniel bateu forte na mesa, levantou-se e a encarou. Começou a gritar sobre o quanto ela não se importava com o relacionamento e a acusar de traição.

As pessoas ao redor pararam de comer para observar a confusão e começaram a comentar entre si.

Cansado, Daniel a puxou pelo braço, obrigando-a a se levantar. Sacudia-a, apontando o dedo para ela em tom de ameaça. Finalmente, um homem decidiu intervir na briga:

- Então você gosta de ser valente com mulheres. - disse o homem. - Vem ser valente comigo, amigão!

Daniel soltou Pâmela e se virou furioso na direção da voz. Ela percebeu que era o novo vizinho.

Daniel avançou em direção ao intrometido, mas os seguranças do shopping intervieram e o levaram para a administração, enquanto ele gritava blasfêmias contra o intruso.

O salvador de Pâmela se aproximou. Ela abaixou a cabeça, envergonhada, ao perceber que era o centro das atenções.

- Está tudo bem com você? - perguntou, tocando em seu braço.

- Se eu dissesse que sim, seria mentira. - ela baixou ainda mais o rosto, cruzando os braços diante do peito. - Obrigada.

- Vamos até a administração. Precisamos verificar se o esquentadinho está melhor. - Ele abriu espaço para que ela passasse.

Foram em silêncio até a administração. Antes de entrarem, o homem disse:

- Meu nome é Thiago. Caso perguntem quem foi o enxerido que se meteu na sua briga. Vou ficar aqui, se precisar. Você entra.

- Prazer, Pâmela! - forçou um sorriso, abriu a porta e viu seu namorado recebendo um sermão do chefe da segurança do shopping.

"Pelo menos algo de diferente aconteceu desta vez, Pâmela." - pensou consigo mesma, tentando ser otimista.

InerziaOnde histórias criam vida. Descubra agora