Aproveitando o frio paulistano das noites de primavera, Elaine usa a touca da jaqueta com pelos sintéticos nas pontas e óculos escuros para disfarçar seu rosto. Ela não quer correr o risco de ser vista visitando Daniel e que isso chegue até Pâmela, principalmente depois da atitude dela durante a aula.
Ela inventou uma desculpa para Carolina e não foi ao bar, indo diretamente para a casa do amante. Ao chegar, toca a campainha três vezes, um sinal combinado para indicar sua chegada.
Daniel atende a porta trajando uma calça de moletom e uma regata branca justa ao corpo. Está suado e, sorrateiramente, abre a porta, orientando-a a entrar rapidamente.
- E então, gato... O que estava aprontando? - pergunta Elaine, retirando o "disfarce".
- Treinando um pouco! - ele a puxa pela mão e a guia até o quarto, onde um saco de pancadas está instalado no centro. - Vou quebrar a cara daquele filho da puta do Thiago! - resmunga, esmurrando o saco de pancadas.
- Ora, bebê... - Elaine passa as mãos pelos ombros dele delicadamente. - Esquece esse povo!
- Não mesmo! - ele se vira para ela, com um olhar inconformado. - Você acha que vou deixar barato a Pâmela me fazer de trouxa?
Ela rola os olhos e um suspiro pesado escapa de seus lábios.
- Por que você insiste tanto nessa garota, hein? - pergunta, irritada.
- Por quê? - Daniel aponta para a cama e se senta. Elaine faz o mesmo. - A conheci num momento em que todos haviam me abandonado.
- Como assim? - ela franze o cenho.
- Tudo começou quando eu tinha mais ou menos oito anos de idade...
O pai de Daniel discutia constantemente com sua mãe. Desde que se conhece, nunca a teve presente. Nunca lhe ensinou a chutar bola, empinar pipa ou jogar videogame. Era comum ele chegar bêbado, gritando e chutando seus dois cachorros.
Numa madrugada fria, Daniel presenciou seu pai agredir sua mãe pela primeira vez. Ela não revidou. Seu olho roxo mostrava a crueldade e instabilidade de Valdecir. Contudo, ela se recusava a entregá-lo às autoridades, pois ainda o amava.
Pediu perdão, disse que não foi por querer, que havia se exaltado mais do que o normal e que isso não se repetiria. Ela o perdoou, beijou-o e abraçou-o. Pediu que ele parasse de beber e ele jurou que o faria.
A promessa durou apenas três dias. No final de semana, ele saiu com os amigos, dizendo que iriam pescar. Gisele sabia que estava sendo traída. Todos os vizinhos e colegas comentavam. Daniel ouviu isso na escola, mas não se manifestou, pois queria defender seu pai, assim como sua mãe fazia.
Presenciou mais e mais agressões até por volta dos doze anos.
Naquele dia, foi diferente. Ela estava decidida a terminar aquele relacionamento. Não aguentava mais apanhar e fazer sexo sem vontade. Não suportava mais um dia de ameaças caso mencionasse a palavra "divórcio".
Armou-se com uma faca de cortar carne, afiada e pontiaguda. Aguardou a chegada de Valdecir, que como sempre, chutava os cães ao anunciar sua presença.
Escondeu a faca atrás de si e virou-se de costas para a pia da cozinha, para encará-lo. Daniel fazia lição de casa na mesa, mas foi orientado a sair. Obedeceu, mas ficou no banheiro, ouvindo os passos do pai se aproximando.
- Gi... E aí, Gi! - Daniel ouviu seu pai rir. - Vem cá, mulher, que hoje estou cheio de desejo!
Saiu do banheiro e se escondeu atrás da parede, para ver o que aconteceria.

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Inerzia
Romance"Inércia é uma palavra pequena, mas com múltiplos significados. (...) ela usou essa palavra para descrever como sua vida estava antes de conhecer o homem que lhe ensinou tantas coisas. - Ando entediado. Sabe como é... Rotina, vida parada, monotonia...