Dois

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Linas, a cidade-fortaleza da Ordem dos Guardiões, já era cercada de lendas mesmo antes de percebermos a necessidade de manter mais segredos do que gostaríamos. Uma cidade silenciosa, onde as pessoas passavam por você como espectros, sem nenhum ruído, sem nada que indicasse que eram reais. Se tivesse sorte, ouviria o barulho distante de espadas se chocando ou alguma outra forma de combate. Mas não haveria nenhum som humano.

No centro da cidade se erguia a Torre. Ninguém sabia dizer sua altura exata, mas ela era imensa, dominando a cidadela. A primeira vez que alguém atravessava suas portas era uma memória que seria guardada pelo resto da vida. Toda a estrutura, construída da mesma rocha negra que o restante da cidade, passava uma sensação de força, nos três sentidos da palavra. Ao entrar, você tinha duas opções: erguer a cabeça, porque estava em casa; ou se encolher, porque não seria capaz de escapar.

E ali, nas profundezas do Reino C’erit, diante dos portões do castelo, eu me lembrava exatamente do meu primeiro dia em Linas. Eles tinham a mesma origem que a Ordem, isso eu sabia. Mas não esperava encontrar tantas coisas que fossem me lembrar da cidadela e do meu treinamento. Sim, tudo ali era diferente. Os c’erit usavam muito metal, e a tecnologia que haviam desenvolvido... Meia Ionessen daria qualquer coisa por um pouco daquilo. Ainda assim, havia detalhes sutis que acendiam as memórias.

Eu teria que tomar cuidado para não cometer o mesmo erro que os soldados que agora me escoltavam haviam cometido. Não podia subestimar os c’erit em momento algum, ou acabaria morta. Nem mesmo todo o meu treinamento poderia me salvar se eles ainda se mantivessem fiéis às crenças de antes da criação do Reino. As mesmas crenças que eram o alicerce da Ordem dos Guardiões.

A caminhada pelo castelo foi rápida. Não precisei andar mais de cinco metros para perceber que a planta do primeiro piso era muito parecida com a Torre, coisa que mais uma vez me surpreendeu. Ao fim do longo corredor, saímos na sala do trono. Imponente, mas prática. Não havia o excesso de decoração e a ostentação que eu já acostumara a relacionar com qualquer monarca, e sim uma dura simplicidade que falava de um guerreiro.

Mas o grande salão estava vazio. Sem hesitar, eu acompanhei a mudança de direção dos soldados, que agora iam para uma entrada parcialmente oculta por trás da estrutura sobre a qual estava o trono. Como na Torre, havia outro corredor ali. Previsível. Alguns metros à frente havia uma porta, a única que eu conseguia ver, e minha escolta parou, sem dizer nada, como se aguardassem um sinal silencioso. Um instante depois, o líder abria a porta e gesticulava para que eu o seguisse.

– Então você é a Guardiã que se intrometeu no Reino. – a voz que me recebeu vinha da minha esquerda, grave, controlada e com a mesma entonação brusca que me era tão familiar.

Eu me virei para encarar quem falara. O homem estava sentado de forma desleixada em um sofá de modelo antigo e feito de algum material que tinha um brilho errático, como escamas. Sua pele era de um cinza claríssimo, os olhos de uma cor tão clara que pareciam ser brancos, e cabelos brancos translúcidos presos em uma trança. As marcas em seu rosto eram ainda mais destacadas do que as das pessoas que eu vira no caminho, quase negras sobre sua pele clara, a não ser quando uma estranha luminosidade parecia atravessá-las e deixá-las azuladas. Ele se vestia de preto, suas roupas me lembrando imagens de Guardiões do início da Ordem. Mas, ao contrário dos Guardiões, ele não tinha aquela presença que inspirava confiança. Em sua mão direita estava um copo, cheio pela metade com algo que eu não reconhecia, apesar de ter certeza que era alcoólico pela forma com que o líquido se comportava quando o homem se movia.

Uma estranha contradição... Voz e roupa de guerreiro, mas desequilíbrio e álcool.

– Arqui-Guardiã Aíla, respondendo ao chamado enviado para Linas. – falei, minha voz perfeitamente controlada e sem emoção.

Sentinela (Crônicas de Táiran #1) [Degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora