Quatro

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Kai se sentou, lançando um olhar rápido para o armário onde guardava as bebidas, antes de suspirar. Balançando a cabeça, eu me sentei no mesmo sofá de antes.

– Seria muito mais fácil se eu apenas cedesse. – ele falou, de repente.

Eu apenas o encarei, erguendo uma sobrancelha. Por mais que entendesse seu desespero, a Ordem nunca permitiria aquilo. Se os c’erit e os airenis se aliassem mais uma vez, seria dada uma ordem de extermínio. Os Guardiões destruiriam qualquer traço dos dois povos, sem se importar com o preço que pagaríamos ou com as consequências. Mas não teríamos uma repetição da Grande Guerra, não quando ainda podíamos ver os vestígios da destruição daquela época por toda parte.

– Sabe o que vai acontecer se fizer isso. – respondi, em voz baixa.

Seu olhar encontrou o meu, e pude ver as emoções que lutavam por controle. Raiva, impotência, desespero... Medo.

– Sei. Um massacre. – as linhas que atravessavam seu rosto brilharam em um tom de azul profundo, um instante antes do homem se virar e arremessar um punhal, tão rápido que só percebi o que acontecera quando a lâmina já estava cravada na parede. – Um massacre se os guerrilheiros seguirem adiante com qualquer loucura que estejam planejando. Um massacre quando os Guardiões ficarem sabendo. Edel morreria, no fim, assim como todos os c’erit.

Não respondi, nem precisava. Me lembrava perfeitamente da sensação de estar de mãos atadas, incapaz de agir sem causar algo ainda pior. Tinha sido para evitar me sentir assim novamente que escolhera me tornar uma Guardiã.

Em silêncio, peguei o copo que ainda estava sobre a mesa e me servi de bebida. Virei a primeira dose em um único gole, e enchi o copo mais uma vez antes de tornar a me sentar. Quase podia me ver na varanda da casa dos meus pais novamente, todos nós em choque, sem saber como reagir à mensagem que chegara. Sem ter como reagir.

– Edel está morto, não importa o que eu faça. – Kai tornou a falar, arremessando outro punhal, em um gesto quase distraído, mas desta vez eu vi de onde a arma viera.

Era como rever o passado. Outra família estava sendo destruída, e Edel era apenas uma criança. Ele não merecia aquilo. Eu lancei um olhar para o homem sentado à minha frente. Eles não mereciam aquilo. E desta vez eu podia ser a diferença que mudaria o final da história. Mas o preço que eu pagaria...

– Existe uma opção. – respondi depressa, antes de perder a coragem, esvaziando o copo, a queimação familiar da bebida servindo de conforto, de alguma forma. Afastando as memórias.

– Nem mesmo uma Arqui-Guardiã seria capaz de efetuar um resgate nessas condições. – sua voz era fria, mas seus olhos diziam outra coisa. Ele queria acreditar, apesar de tudo.

Suspirando, sustentei seu olhar por um instante. Kai estava certo. Nenhuma Arqui-Guardiã tentaria fazer um resgate destes, seria um risco em vão. Invadir uma base de guerrilheiros airenis seria suicídio, eles eram tão fortes quanto a maioria dos Guardiões, e esta não era a função da Ordem.

Mas eu tinha uma vantagem.

Sem dizer nada, alterei minha percepção. Agora podia ver os punhais que o c'erit mantinha ao seu redor, da mesma forma que eu tinha minha espada sempre comigo, mesmo que não estivesse visível. Esta era uma habilidade incomum, que se tornava cada dia mais rara. Mas não tão rara quando a capacidade de ver o que outras pessoas levavam consigo.

Usando meu poder, peguei um dos punhais e o arremessei na parede. A lâmina entrou no espaço entre as duas armas que já estavam ali, se fundindo a elas.

Kai encarou os punhais, sua expressão completamente vazia. Eu sabia que tinha conseguido surpreendê-lo, mas não esperava o olhar que ele me lançou. Havia admiração ali, e algo mais. Esta não era a reação normal quando alguém descobria o que eu podia fazer.

Sentinela (Crônicas de Táiran #1) [Degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora