*HELENA*
Anos se passaram e por ironia do destino, o único momento em que eu conseguia um pouco de paz, era quando eu dormia, porque depois que eu acordava, era hora de viver aquele sonho ruim.
Eu sentia tanta vergonha. Me sentia humilhada cada vez mais a cada ano que passava, porque eu envelhecia, mas ainda assim não sabia como sair daquela situação.
Fernando ainda me buscava todos os dias, porque o meu pai não me deixava voltar sozinha pra casa. Sendo que o perigo acontecia exatamente quando eu entrava nela. Ele pensava que estava me protegendo, enquanto na verdade, estava me entregando de bandeja pro meu pior pesadelo.
Fernando abusou de mim em cada cômodo da minha própria casa. Ele queria que eu lembrasse dele o tempo todo. E em todas as vezes ele tentava me convencer de que eu gostava dele e a responder que "sim" quando ele me fazia a mesma pergunta: "está gostando?"
Fernando tinha a mania de colocar meus braços para cima, às vezes me prendia com as algemas e às vezes segurava minhas mãos com as dele. As vezes ele até tentava criar um clima romântico e eu só sentia vontade de vomitar. Conforme fui crescendo, fui aprendendo a disfarçar com maquiagem alguns hematomas que apareciam.Hoje aos 15 anos, me pergunto para que vim a esse mundo. Não consigo nem me lembrar de como eu era antes de tudo acontecer. Em minha mente só tem lembranças de feridas que nunca cicatrizam e sinto que nunca irão cicatrizar.
Eu não aguento ficar no meu próprio quarto, porque eu sempre lembro daqueles momentos quando eu olho para tudo que tem dentro dele: o meu armário, as milhares de bonecas e ursos que estão em uma estante exclusiva para eles, o rosto de cada boneca e urso me lembra um momento diferente. A mesa do computador, o computador, minha penteadeira, o espelho, a TV, o vídeo game, o tapete, os quadros na parede. Eu não aguento olhar para mais nada que tem naquele lugar.
Minha mãe ainda não havia chegado, agora como eu sei me virar sozinha ainda mais, ela chega um pouco mais tarde, as 17hs.
Desço na cozinha e pego a maior faca que encontro. Subo para o meu quarto de novo, fecho a porta mas não a tranco. Tiro minha roupa e vou para o banheiro, lá a banheira já estava cheia. Entrei e fiquei sentada ali.
Eu queria acabar com toda aquela dor, eu não aguentava mais aquele corpo que eu escondia por baixo das roupas folgadas. Aquele corpo não era meu, ele só existia para satisfazer os desejos do Fernando e eu achava isso tão injusto. Eu não aguentava mais o peso daquele grito preso na garganta.
Tentei algumas vezes contar para a minha melhor amiga, a Eva, quando ela insista que tinha algo de errado comigo, quando eu começava a chorar sem mais nem menos, perto das duas últimas aulas terminarem. E eu apenas respondia: "Amiga, eu sou louca, não se preocupa comigo, está TUDO BEM."
Eu queria cortar os meus pulsos de vez, para morrer rápido, e se por acaso demorasse um pouco, eu enfiaria a faca no meu coração, no estômago, em qualquer lugar que fosse fatal. Eu precisava dar paz para a minha alma, eu merecia isso.
Cheguei pedir algumas vezes para o Fernando me matar, para usar aquela arma comigo, porque ele estaria me fazendo um favor.
"- Morta você não serviria pra mim, Helena. Eu preciso de você assim, cada vez mais gostosa. Como iríamos nos divertir com você morta? Mas os seus pais sim, eles servem mortos para mim, porque aí você ficaria sendo só minha. Eu ia fazer de tudo para pegar a guarda da minha sobrinha linda e desamparada. Tudo ficaria ainda mais perfeito. Quer saber, isto está virando uma ótima ideia."
Disse ele uma vez, com aquele maldito sorriso no rosto.Tentei eu mesma usar aquela arma em mim, mas até eu conseguir entender como usá-la, ele conseguiu pegar ela das minhas mãos. E assim eu ganhei mais um motivo para ser castigada.
Peguei a faca e tentei fazer o mais profundo corte, mas a imagem da minha mãe me encontrando morta dentro da banheira, me fez afastar um pouco a faca. Passei anos sentindo uma enorme raiva e mágoa dela, por me deixar sozinha naquela maldita casa, eu sendo ainda tão nova. Ela preferia ir para aquele maldito trabalho, que nem tinha necessidade, do que cuidar de mim. Eu não tinha vontade de ter filhos, mas se um dia eu tivesse, eu nunca iria deixá-los sozinhos. E o meu pai, ele deveria ser o meu herói, mas ele era o herói da empresa. Por um momento cheguei pensar que eles mereciam me encontrar morta, para que assim talvez conseguissem enxergar que eu era mais importante que os seus trabalhos. Mas eu não conseguia fazer o corte. Se pelo menos eles tivessem outra filha. Eles sofreriam, mas logo ocupariam suas cabeças com o trabalho.
Droga! Eu não conseguia fazer a merda do corte. Começo a chorar histericamente, porque a imagem dos meus pais me segurando sem vida não sai da minha cabeça. Jogo a faca longe e fico ali parada, com raiva de mim mesma, porque nem para me matar eu prestava.
Eu já estava morta, só precisava acabar com o meu fôlego. Mas por que eu não conseguia? Isso só fazia com que eu pegasse ainda mais ódio de mim.
Voltei para o quarto e peguei todas aquelas bonecas e joguei dentro de uma caixa, joguei também o vídeo game, tirei o tapete, arranquei os quadros da parede, só deixei o computador e a TV, porque deles eu ainda precisava. Deixei o quarto mais vazio e sem graça possível, para combinar comigo. E assim quem sabe, eu não me sentisse tão sozinha.
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DEGUSTAÇÃO | Eu morri naquele dia
Non-FictionO mundo está tão cheio de maldades, que às vezes dá medo até pisar os pés na rua. Mas o que fazer quando a maldade está dentro da sua própria casa? Era pra ser um dia comum, como qualquer outro. Helena não imaginava que teria sua inocência brutalm...