Capítulo 3 ⭐️

7K 762 135
                                    

*Helena*

  Fiquei imóvel, sem conseguir acreditar que tudo aquilo tinha realmente acontecido.

  Minha mãe estaria em casa daqui a uma hora, e como eu não queria que ela me encontrasse naquele estado, juntei minha pouca força e levantei da cama. Fui andando devagar até o banheiro que tem no meu quarto. Liguei o chuveiro e esperei a banheira encher. Entrei nela e quando fui me sentar, gritei. Até a água fazia o meu corpo doer, minhas partes íntimas latejavam. Claro, elas acabaram de ser violadas da maneira mais absurda possível. Chorei alto, abraçada as minhas próprias pernas.

  Eu me sentia imunda, de um jeito que a água não conseguia me limpar. Sentia como se aquele corpo não fosse mais meu, porque eu não consegui protege-lo. E sentia vergonha, não sei porque, mas sentia.

  Como seria a minha vida a partir de agora? E se realmente ninguém acreditasse em mim? Porque todos amam o "bonzinho tio Fernando". Eu o amava.
  Ele seria capaz de me matar realmente? Ele foi capaz de me estuprar, então eu acho que seria capaz de me matar também. Ele não teria coragem de matar o próprio irmão, teria?. Mas foi capaz de fazer o que fez com a filha dele, que é mais nova do que a própria filha, então acho que sim também.
  Nem para a polícia eu poderia falar, porque Fernando era o delegado.

  Olhei para os meus pulsos, eles estavam vermelhos. Cai no choro de novo sem conseguir parar até para respirar.

  Depois de trinta minutos sai da banheira, voltei pro quarto e arrumei a cama.  Não fazia ideia de que aos 10 anos, eu estava desfazendo a cena de um crime como aquele.

  Deitei e fingi estar dormindo para quando a minha mãe chegasse.

  Com apenas dez minutos que tinha deitado, ela chegou fazendo barulho no andar de baixo. Bateu na porta do meu quarto e entrou devagar.

  - Filha? - Ela senta na cama e acaricia meu cabelo.

  - Mamãe? - Eu finjo estar despertando.

  - Tudo bem?

  - Tudo bem. - Menti.

  - Estava chorando? - Ela levanta o meu rosto.

  - Como eu poderia estar chorando se eu acabei de acordar? - Sorri, querendo realmente chorar de novo.

  - Ah, que ótimo então. Vou preparar algo para comer, quer bagunçar a cozinha comigo? - Ela brinca.

  Lembrei que não tinha comido nada e minha barriga estava roncando.

  - Desço daqui a pouco. - Digo.

  - Tudo bem, te espero lá embaixo. - Minha mãe me dá um beijo no rosto, mesmo lado em que levei o tapa e saiu do quarto.

  Me levanto e me olho no espelho. Pelo menos não tinha hematomas no rosto, só a vermelhidão nos pulsos, então coloquei uma blusa de tecido leve, mas de mangas longas.

  Desci e quando cheguei na cozinha, minha mãe estava preparando um café e um lanche, mais tarde ela prepararia o jantar. As vezes me perguntava porque não tínhamos uma empregada. Ou pelo menos, uma babá.
  Olhei para a mesa e vi o Fernando sentado ali, tomando o maldito copo de água. Tentei afastar o pensamento.

  - Queijo, mortadela, ou os dois juntos? - Minha mãe pergunta, quando eu paro em pé de frente para ela, do outro lado do balcão.

  - Os dois, estou com fome. - Sorri.

  - Não comeu mais cedo? - Ela me lança um olhar interrogativo.

  - Sim. Mas se eu dormir, eu sempre irei acordar com muita fome.

  Fiquei olhando para ela, andando de um lado para o outro. Mamãe era tão linda, com seus olhos azuis e cabelos claros , a quem eu puxei. Fiquei pensando em como ela sofreria se soubesse pelo que passei, mas ao mesmo tempo também fiquei com raiva por ela me deixar sozinha. Queria abraça-la, mas sabia que choraria se fizesse isso.

  Depois que ela terminou de fazer o nosso lanche, sentamos no sofá e comemos, assistindo TV. Alguns minutos depois, meu pai chegou.

  - Olá meus amores. - Ele joga uma maleta na mesinha de centro e se joga no meio de nós duas. Demos um beijo nele, cada uma de um lado.

  - O que estão comendo? Estou com fome.

  - Vou preparar um lanche para você. - Minha mãe se levanta e caminha em direção a cozinha.

  Me aconchego ao lado do meu pai, colocando seu braço em volta de mim.
Queria me sentir protegida, mesmo depois do pior já ter acontecido.

  - Tudo bem, filha? Ele meche em meu cabelo.

  - Sim, tudo.

  Depois de alguns minutos quieta, tento falar devagar.

  - Papai... eu estava pensando... depois da escola eu poderia vir de ônibus.

  - Não mesmo. Eu não vou deixar você andar de ônibus sozinha.

"Mas ficar sozinha em casa eu posso, né?"

  - É que eu não queria mais incomodar o tio Fernando.

  - Não é incomodo, filha. O tio Fernando te adora, ele te busca com prazer. Eu te buscaria se pudesse, mas como não dá tempo pra mim, o seu tio nos faz esse favor, já que ele vai todos os dias buscar a Fernanda mesmo. - Ele diz, sem tirar os olhos da TV.

  - Tudo bem. - Minha palavra final.

  A noite eu fui mais cedo para o meu quarto, depois de me despedir dos meus pais. Quando entrei nele, a primeira coisa que eu vi foi a boneca na penteadeira. A peguei e comecei quebrá-la enquanto começava a chorar de novo. A quebrava com tanta força, porque eu sabia que nunca mais olharia para ela com os mesmos olhos. Fui quebrando e pescoço, os braços, as pernas, tirando os fios de cabelo. E quando eu terminei de destruí-la, sentei no chão, encostando minhas costas na cama.
  Fernando havia me destruído do mesmo modo que eu acabara de destruir aquela boneca. Eu nunca mais seria a mesma.
  Eu morri naquele dia e a minha vida nem tinha começado direito. Esperei anos para que enterrassem aquele corpo que eu não queria mais ter, mas ninguém enxergou a minha morte interior.
  Gritei em silêncio todos os dias, na esperança de que alguém pudesse entender o que eu não dizia. Mas optei por aguentar tudo aquilo sozinha.

DEGUSTAÇÃO | Eu morri naquele diaOnde histórias criam vida. Descubra agora