DOIS

30 11 29
                                    

Sexta feira, 8h10m

Melissa achou que naquele dia acordaria melancólica. Mas não tinha mais nem vontade de ser melancólica. Não tinha vontade de nada, francamente. O desejo de falar com Antônio para alugar aquela choupana, cabana, ou seja lá o que fosse, havia sido somente uma tentativa de fazer um último esforço por sí própria. Como uma espécie de ritual. Lembrou-se da história popular sobre elefantes irem para um lugar secreto, uma caverna talvez, para morrerem. Era exatamente isso o que ela estava tentando realizar naquele momento. Pegaria a estrada, o veneno, o ácido e algumas tralhas. Já havia imaginado tudo. Pensara em si sentada, ingerindo o veneno e perdendo os sentidos. Não importa se iria sentir dor, ao menos estaria sentindo alguma coisa, não é mesmo? E além disso, por maior que fosse, seria apenas uma vez. Embora não tivesse certeza se os elefantes cometiam suicídio.

Caso resistisse e ficasse insuportável demais a coisa, ela usaria a calibre 16 guardada, segundo Antônio, no sótão. O pobre rapaz falou com bastante deleite da arma, que é dele, mas que ele escondera ali em cima por motivos de defesa pessoal, quando passava temporadas de férias no local. Mas era óbvio que nunca havia atirado, ou mesmo tocado em um singelo calibre '38. Melissa sim.

Acabou o café e se dirigiu até a oficina de Xavier, ali no mesmo quarteirão. Xavier era o mecânico barbudo de meia idade que lhe concedera o aluguel de um velho Chevette á álcool, ano 1983, por cinquenta paus e uma caixa de cervejas. Quase de graça. Assim como Antônio, ele estranhara o pedido da garota, e sua predileção por um carro antigo, mas como ele estava precisando de um pouco de grana, e faria um churrasco de sete de setembro, alugou até a velharia caindo aos pedaços. Assim, a garota entrou no carro naquela manhã ensolarada, rumo à rodovia e ao seu destino, dentro do Chevette marrom.

- Essas porras de brinquedo, essas porcarias sem forma, esses carros de hoje em dia, só os vejo na cor cinza ou preto. Não gosto nem das cores, e detesto todos esses modelos. É tudo igual por fora. Na verdade todos parecem o mesmo carro. Quando dirijo uma velharia dessas aí, me sinto um pouco menos "banana". Você é uma garota que entende das coisas, só lamento não estar em melhor estado – disse Xavier, com seu grande charuto cubano na boca, desdenhando do que quer que fosse que ele achasse que Melissa estava pensando naquele momento. Ela sabia que o homem se referia ao carro, mas também lamentava, ela mesma, não estar em melhor estado. Melissa apenas sorriu e acelerou para fora da oficina. O homem a acompanhou com a vista, saindo lentamente, dobrando a esquina e por fim sumindo, até que não se pôde mais distinguir o barulho do motor dos ruídos da rua. Assim a solitária garota pegou a rodovia. Naquela hora da manhã tudo já estava engarrafado, calorento. Todas aquelas famílias pegando a estrada. No rádio, apenas musicas chatas faziam-na mudar de estação em estação. Havia esquecido o pen drive em casa, e não tinha se lembrado de escutar suas canções preferidas uma última vez. Resolveu desligar aquela porcaria.

Melissa seguiu por um caminho alternativo, ensinado por Antônio, e não perdeu mais que três horas no trajeto. O carro não apresentou problemas, nenhuma preocupação. Logo encontrou o desvio mencionado pelo colega. Naquele momento ela foi tomada por uma estranha euforia. Esta euforia passageira logo deu lugar ao sentimento de indiferença normal da garota, ao visualizar a entrada do lugar. Melissa passou pelo tal poço às margens da estrada, e finalmente pela entrada do terreno. Lá estava a placa que Antônio mencionara, escrito "Jacarandá". Era uma antiga armação de madeira carcomida, que provavelmente já havia tido dias melhores. Dali por diante não havia mais asfalto na estrada. O caminho ia ficando cada vez mais curto e a vegetação mais alta até que uma clareira se abriu. Nesse momento Melissa se perdeu ligeiramente, logo encontrando o restante da estrada alguns metros adiante. Ela seguiu. Naquele momento, estava muito quente. Estranhou não ouvir mais barulho algum da rodovia, que não estava muito longe. Quase que por instinto, a garota levou a mão ao toca-fitas AM/FM do Chevette, apenas para perceber que havia só o sinal de estática. Nada de estações de rádio sintonizadas. Naquele instante, bambus arqueavam-se na estradinha de terra, formando um estranho teto verde. Caso estivesse com o os vidros das portas abaixados, provavelmente a garota estaria cheia de folhas e outras possíveis sujeiras ali dentro.


Banho De Sangue - Um Conto InfernalOnde histórias criam vida. Descubra agora