08. Acordo

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Devo ter ficado um bom tempo perdido dentro da minha cabeça, quando voltei para a terra ele havia aberto as embalagens, colocado comida no garfo e acho que ele estava tentando me dar comida na boca... ok, essa foi a gota d'água!

"Mas qual é o seu problema?"

Ele me olhou confuso e depois para a comida

"Você não está com fome?"

Como se o universo estivesse conspirando para me avacalhar, o meu estômago roncou alto assim que ele fez a pergunta. Eu respirei fundo.

"Sim, eu estou com fome, mas eu posso comer sozinho, não tenho mais cinco anos, e desde quando os médicos cuidam dos pacientes desse jeito, isso é parte do trabalho dos enfermeiros, que são habilitados a isso."

"Olha, começamos com pé errado, eu preciso te ajudar a comer não por achar que você seja uma criança, mas porque acabei de dar pontos no seu pulso, você não pode força-los agora, deve ter cuidado com eles por pelo menos três dias e sim você está certo um enfermeiro é bem mais qualificado para cuidar das necessidades básicas dos pacientes do que um médico, eles tem treinamento para isso, mas como você já sabe, agora eu sou responsável por você, por isso a partir de hoje, sou eu quem vai te ajudar e acompanhar sua rotina."

"PERA AI! Volta a fita e para! Como assim eu já sei? Do que diabos você está falando?

Ele me olhou confuso, para um estudante brilhante ele fica confuso com muita facilidade.

"Verdade, eu não me apresentei. Eu sou o Daniel, estou estagiando para o seu Psiquiatra o Doutor Carlos Santos"

Continuei na mesma, que ele era estagiário do meu psiquiatra eu já tinha percebido.

"Acho que vou precisar de um pouco mais de informação, por que isso não explica você estar dando uma de babá!"

"O Doutor Carlos é meu professor na universidade, e mesmo eu gabaritando a prova ele não queria me aceitar para o estágio, ele é o melhor na área dele e eu queria muito aprender com ele, então ele concordou em me aceitar, mas que íamos fazer diferente, ao invés de eu acompanha-lo para todos os lados, ele me apresentou prontuários de cinco pacientes, eu escolhi um, que no caso foi você, e devo ser responsável por você, eu devo ser seu enfermeiro, seu médico, fazer suas avaliações, garantir que tome seus remédios, que coma direito, que não falte a suas sessões, se eu conseguir ele vai me deixar fazer a residência com ele aqui no hospital, na área de urgências e emergências"

Explicação digna de um professor de filosofia, porque eu continuei não entendendo nada, eles tem um acordo do cara ser minha babá, isso eu entendi, mas eles não deviam ter me consultado se eu estava de acordo?

"E vocês dois decidiram isso sem nem ao menos me consultar?"

"Mas ele te consultou"

"Não consultou, não!"

"Mas ele me disse que você concordou, disse que você achou que seria divertido, e que ia ser bom conversar com gente da sua idade"

"Eu disse isso?"

"Segundo o Doutor Carlos, sim você disse."

Droga, droga, droga, droga, mil vezes droga, eu devo ter tido um apagão, se eu estivesse consciente eu jamais teria concordado com isso, a última coisa que eu queria era uma babá, desde quando eu quero conversar com gente da minha idade? Desde quando eu quero conversar!? onde isso ia ser divertido?

"Olha, eu realmente não concordo com isso, não me leve a mal, mas isso é muito esquisito."

"Por favor, só me deixa tentar, se você se sentir muito desconfortável, nós paramos, mas essa residência é o sonho da minha vida, eu me esforço tanto, eu quero conseguir atender da melhor forma qualquer paciente, eu preciso muito dessa experiência, me dê uma chance, por favor!"

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAH POR QUE EU NÃO CONSIGO DIZER NÃO PARA AS PESSOAS!!!

"Tudo bem, mas se começar a me atrapalhar você vai embora, e vamos ter algumas regras, primeiro eu como sozinho, eu tomo banho sozinho, eu tomo remédios sozinho, segundo eu passeio por ai sozinho, não que você não possa saber onde eu estou, mas não quero você me seguindo feito uma sombra pra baixo e pra cima o dia todo, e terceiro eu não sou sua cobaia, se você não souber o que fazer ou nunca fez antes chame a enfermeira Linda, não me cause problemas, eu não estou feliz com essa situação não faça eu me arrepender mais ainda"

Ele me encarou como se estivesse avaliando o que eu disse, olhou pros meus pulsos, olhou pra minha cara, olhou nos meus olhos, e finalmente me respondeu

"Certo, contra- proposta, primeiro no momento, até seus pulsos melhorarem eu vou te ajudar com as atividades básicas, não é uma afronta nem nada, é que esse é realmente meu trabalho, se eu deixar você fazer tudo sozinho e esses pontos abrirem de novo ou infeccionarem nós dois teremos problemas, quando você estiver bem, nem tem porque eu te ajudar, segundo pode passear sozinho, desde que fique em áreas comuns no hospital, onde haja circulação de enfermeiros, eu preciso saber onde você vai estar, ou pelo menos tem que estar localizável pois tenho que me certificar que você compareça as suas sessões com a psicóloga e com o psiquiatra , principalmente com o psiquiatra, e terceiro, não se preocupe não vou te usar de cobaia, não quero perder um CRM que eu ainda nem tenho, você sempre será consultado antes de qualquer procedimento invasivo, será como ter um enfermeiro um pouco mais dedicado que o normal"

Eu olhei para ele, se eu confrontasse o que ele disse eu estaria sendo infantil, tudo era lógico, mas acho que tinha parte teimosa dentro de mim que não ficaria feliz sem dar a última palavra...

"Tudo bem, me parece razoável, mas tem mais uma coisa..."

Ele me olhou apreensivo...

"Diga..."

"Se me colocar em uma dessas camisolas de novo... eu dou na sua cara..."

Ele me olhou perplexo, depois riu

"Certo, vou me lembrar disso!"

Depois disso deixei ele me dar de comer, não foi tão ruim quanto imaginei, deu pra notar que ele estava realmente se esforçando para me agradar, não gosto disso, sempre acabamos fazendo algo desnecessário quando nos esforçamos demais para agradar, o melhor é agirmos como faríamos normalmente, e sermos educados, forçar uma mentira, uma hora cansa, e as coisas tendem a piorarem ao invés de melhorar. Mas vou deixar para dar meu veredito final sobre Daniel amanhã, agora eu vou dormir e torcer para quando eu acordar esse dia ter sido um pesadelo. 

Coisas óbvias, Que ninguém sabe...Onde histórias criam vida. Descubra agora