10. Manhã de Sol

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Acordei suando frio, estava agitado, minha respiração totalmente descompassada, acho que tive um pesadelo, eles são comuns, o problema é que nunca me lembro deles, só imagino que foram ruins pelo estado em que eu acordo, você pode até pensar que é bom não se lembrar dos sonhos ruins, mas está enganado, precisamos saber do que temos medo, como vamos superar o medo, se não sabemos o que está nos assustando? Não gosto disso, resolvi que ia pensar em outra coisa, uma hora eu descobriria, olhei no relógio, eram seis da manhã, daqui uma hora o Daniel viria me acordar, não sabia se valia apena tentar dormir mais um pouco, acho que não, resolvi levantar.

Abri a cortina, era uma linda manhã de sol, não havia nenhuma nuvem no céu até onde eu podia ver, estava tudo azul, abri a janela, uma brisa fresca e agradável vinha do jardim do hospital, respirei fundo e me alonguei, parecia que o dia ia ser bom, fui pegar uma cadeira, resolvi ficar sentado olhando pela janela até o Daniel aparecer, foi quando notei o caderno, eu não sei como havia me esquecido dele, já fazia uma semana que Daniel me seguia pra baixo e pra cima, acho que fiquei tão fissurado nisso que me esqueci do resto, eu não havia lido mais nada do caderno nem falado com Lian, espero que ele não esteja bravo comigo, mudei um pouco meus planos, ia ler o caderno sentado perto da janela até o Daniel aparecer.

Comecei a ler as páginas que vinham em sequência, deixei as palavras inundarem a minha mente...

Uma bela manhã de Sol, gosto da ideia de falsa paz que essas manhãs trazem, é como se dissessem venha pra fora o dia vai ser maravilhoso , e você vai , mesmo sabendo que é mentira , que o dia provavelmente vai ser monótono ou ruim, muitas vezes péssimo, mas você vai , você vai porque lá no fundo você tem esperança de que o dia pode pelo menos ser bom, e você quer acreditar nisso, porque as manhãs de sol fazem isso com você, fazem você esperar por algo bom, por isso as vezes prefiro as manhã nubladas elas são mais realistas , não iludem você com a ideia de um bom dia, elas só te deixam incerto com a probabilidade de ficar molhado ou não, e se algo de bom acontece no dia já ficamos felizes pois não esperávamos nada dele, não ficamos desiludidos em dias nublados, ficamos conformados com eles, mas o que podemos fazer? acho que está na natureza do ser humano, sempre esperamos por uma manhã de sol...

Minha mente travou, as lembranças vieram, primeiro dia de aula do último ano do ensino médio, eu havia mudado de cidade por causa do emprego do meu pai, ia começar o último ano como o novato, eu não me importei muito, eu não tinha amigos na outra escola, eu não sofria bullying nem nada do tipo, eu só não conversava muito com as pessoas, só o básico, trabalhos, jogar bola na educação física, ninguém me incomodava, eu só não conseguia criar um laço com eles, eu olhava e todos pareciam tão superficiais, os assuntos não me interessavam, os dramas eram desnecessários, pessoas rasas, mentes vazias, havia mais vida nas páginas do livros didáticos do que nos alunos que os liam.

Enfim eu ia começar em outra escola, a manhã estava ensolarada e agradável, por um momento eu pensei que as coisas seriam diferentes, o dia parecia tão bonito, que eu achei que era um sinal de que ele seria incrível, mas não foi, escola diferente, cidade diferente, professores diferentes, mas parece que um vírus se espalhou entre os jovens, não importa onde você esteja a receita parece a mesma, meninas sem autoestima que fazem de tudo para parecer que a vida delas é perfeita, meninos com confiança nula, que fazem brincadeiras estupidas e contam as meninas com que saíram como se fossem objetivos em jogo, tentando desesperadamente provar algo que nem eles sabem o que é, o celular de última geração, as roupas de marca, a festa que não sei quem ficou muito louco, como se isso fosse uma coisa incrível, as curtidas no facebook, os seguidores no instagram, a inveja de algo irrelevante, a competição desnecessária pelo nada, no fim ninguém parecia de verdade, ou ninguém tinha coragem de ser de verdade, mas eu não os julgo, eu também não tinha, eu podia ter falado mais sobre mim na apresentação, mas não o fiz, poderia ter dissertado com entusiasmo quando um colega me perguntou se o livro que eu lia era bom, mas tudo que fiz foi responder com um monossílabo e um sorriso meio torto, eu podia ter feito a minha manhã de sol valer apena, mas não , eu fiquei só com a esperança, esse é o problema com a esperança, ficamos esperando, esperando que algo aconteça, mas não fazemos nada acontecer, ficamos com as promessas, mas não as cumprimos. Eu podia ser diferente deles, mas isso não me fazia melhor do que eles, ser desinteressado não te faz interessante, talvez eu fosse tão raso quanto eles, ou talvez todos nós fossemos muito profundos, mas nós não estávamos dispostos a mergulharmos uns nos outros para descobrir, não era mais fácil parecer raso, estranho pensar nisso agora, nós mesmo não abraçamos a oportunidade que uma manhã de sol nos dá, nós só esperamos, mas esperar raramente resolve alguma coisa.

Me lembro de que não foi assim só no colégio, o primeiro ano da faculdade não foi diferente, nem o segundo, me lembro que a partir do terceiro as coisas pareciam mais maduras, nós falamos de futuro, matérias, profissão, trabalho, mas só, eu era uma criança brincando de ser adulto, recebendo elogios pelo meu trabalho e ficando feliz com isso, não que isso não fosse importante, era importante mas não era tudo, ou pelo menos não devia ser, é confuso, eu me lembro da formatura, eu nunca havia me sentido tão bem, os meus pais pareciam tão orgulhosos, o meu irmão se gabava pra todo mundo de como eu era o orador da turma, do excelente emprego que eu havia conseguido graças ao estágio, do projeto que eu apresentaria no congresso internacional nos Estados Unidos, eles falavam como se eu fosse grande, e eu me sentia grande, de repente tudo o que eu passei valeu a pena, horas sem dormir, lugares que eu deixei de ir, hobbys que eu abandonei, horas e mais horas atrás de pilhas de livros e telas de computadores, eu estava feliz, e isso era bom, era maravilhoso, o problema é que eu achei que eu estava feliz por causa da formatura, por causa do emprego, por causa do congresso, e não era por isso, pelo menos não só por isso, eu estava feliz porque minha família estava comigo, eu estava feliz porque eles diziam o quanto me amavam, eu estava feliz porque todos estavam, se eu tivesse percebido isso antes, será que as coisas teriam tomado um rumo diferente? Às vezes fico pensando nisso, mas sabe o que é engraçado? Só agora que eu percebi, naquele dia havia sido uma linda manhã de sol.

Eu estava tão entretido com os meus pensamentos que nem percebi que o Daniel havia entrado no quarto, ele me olhava confuso com uma bandeja nas mãos, eu sorri pra ele, ele fez uma cara engraçada e sorriu de volta, acho que estava surpreso por eu estar acordado, mas isso não importa, o que importa é aproveitar cada manhã de sol.

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