12. O homem mais velho do mundo

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Finalmente o terceiro domingo do mês, o único dia do mês onde minha única preocupação é tomar meus remédios, nada de consultas, nada de exames, nada de visitas, nada de Daniel me dizendo o que fazer, a liberdade de ficar sozinho com os meus pensamentos, não que eles sejam uma boa companhia, mas eu gosto de refletir em paz de vez em quando, eu queria ler o caderno do Lian sem me preocupar em ser visto chorando e ter que me explicar, eu não falei do caderno para o Daniel, não que fosse um segredo, é que sei lá era uma coisa meio particular, eu sei sou esquisito afinal o caderno nem é meu, mas é como se falasse comigo, era como se Lian falasse comigo por ele, e fizesse eu mesmo falar comigo mesmo, meio confuso, não? Acho que isso não importa agora, ficar pensando sozinho me deu vontade de ir ver o Lian, já fazia um tempo que queria saber como ele estava, e não saberia quando eu teria um tempo para vê-lo sem me preocupar com Daniel tendo um surto porque eu sumi. Não sei porque não queria que Daniel soubesse sobre Lian, acho que eu não queria que meu psiquiatra soubesse na verdade, não faz sentido eu sei, mas a única com quem eu falei sobre ele e o caderno foi a Zo, eu não deixei ela ler o caderno, então acho que isso é complicado em algum lugar dentro da minha cabeça, mas bom eu aprendi que eu só devo falar quando me sinto confortável para, então dentro da minha lógica absurda tudo estava certo.

Eu entrei no quarto do Lian sem bater, ele não gosta de batidas, ele diz que se a pessoa não sabe que é bem-vinda, é porque ela não é, achei intrigante, mas não discuto com ele, gosto de ouvir suas ideias, absorvê-las e questiona-las dentro da minha cabeça, só se questiona uma pessoa sobre suas ideias quando se quer muda-las ou quando não consegue compreende-las, eu não quero muda-lo gosto dele como ele é, e se eu não compreender suas ideias não faria sentido escutar o que ele tem a dizer. Ele estava sentado no mesmo lugar de sempre, ele sorriu ao me ver, eu devia pedir para ele me ensinar a sorri, quem sabe eu paro de assustar as pessoas, me sentei no mesmo lugar de sempre também, já tínhamos criado um padrão nesses encontros, eu lia em voz alta ele me observada, e as vezes soltava suas ideias livres pelo ar, assim como seus textos livres pelas páginas. Não esperei por um sinal ou algo do tipo, apenas abri o caderno e comecei a ler...

" Queria conhecer o homem mais velho do mundo, queria saber se ele era sábio, afinal dizem que o tempo é um bom professor, queria conversar com o homem mais velho do mundo, queria saber se ele tinha alguma ferida, pois dizem que o tempo tudo cura, queria ouvir o homem mais velho do mundo, pois dizem que o tempo tem muito a dizer, queria ver o homem mais velho do mundo, pois dizem que o tempo não pode ser descrito, queria ser o homem mais velho do mundo, pois seria sábio, minhas feridas não passariam de leve cicatrizes, teria uma grande história para contar e as pessoas teriam que me ver para acreditar, mas ai me lembro, que ser velho não quer dizer ser sábio, pois só é sábio aquele que se dispõe a ouvir e a aprender, me lembro que o tempo pode até curar algumas coisas, mas se o problema é seu não deve deixar toda a responsabilidade com ele, me lembro que uma grande história, não é necessariamente uma boa história, e que alguns versículos podem ser muito melhores que parágrafos inteiros, e me lembro que não adianta nada me mostrar para os outros acreditarem, e eu não acreditar em mim mesmo, e então por fim eu penso, quero um dia ser um homem velho, talvez o mais velho do mundo, mas quero ser o homem velho que , aprendeu, curou, viu e ouviu o mundo."

E lá se foi a minha mente, ela vagueou por memórias, nenhuma triste dessa vez, me lembrava do meu pai, e a sua frase favorita para explicar o porquê de me negar alguma coisa, desde pequenas coisas como porque eu não poderia dormir na casa de um amigo, ou ir a uma festa, até o porquê eu tinha que ir com ele a algum jantar da empresa que normalmente seria desagradável... ele sempre dizia " Quando você for mais velho você vai entender". Bom eu fiquei mais velho, mas não entendi tudo o que ele disse que eu entenderia, me pergunto o quão mais velho eu teria que ficar para entender tudo, eu entendi que apesar do meu amigo me querer na casa dele podia ser que os pais deles não quisessem, eu entendi que na festa podia ter bebidas e drogas que meu pais tinha medo que eu usasse, mas nunca entendi porque tinha que ir a um jantar para agradar pessoas que eu não gostava, para manter uma imagem ilusória de que tudo era perfeito, não entendi porque tinha que dizer que era um prazer conhecer uma pessoa pela qual eu não tinha o mínimo interesse, acho que algumas coisas se confundem quando ficamos velhos, as pessoas confundem amadurecer com aprender hipocrisia, porque foi só isso que eu entendi ao ser obrigado a lidar com esses ambientes tóxicos, fingir, fingir que está tudo bem o tempo todo, fingir que não sabe o que aquelas pessoas falam quando pensam que você não está ouvindo, fingir que nos importamos com as opiniões delas, quando elas estão apenas nos julgando superficialmente e a opinião delas é a última coisa devia nos preocupar, não sei se algum dia serei velho o suficiente para entender isso, na verdade nem sei se quero entender isso, essas coisas nunca me levaram a lugar nenhum.

" O que está pensando?"

Me assustei com a voz de Lian, ele raramente interrompe meus devaneios

" Estava pensando na frase do meu pai..."

"Que frase?"

"Quando for mais velho você vai entender"

"Vou entender o que?"

Eu olhei pra ele e ele sorriu, eu ri

" Essa é a frase: Quando for mais velho você vai entender"

Ele riu e inclinou a cabeça

"E o que você deveria entender?"

"As coisas que ele não sabia explicar ..."

Minha mente deu estalo, foi aí que eu entendi, nem meu pai entendia as vezes, ele apenas esperava que um dia eu entendesse.

"Acho engraçado, essa necessidade de entender as coisas, as vezes as coisas simplesmente são, não tem muito o que entender, nem tudo tem uma razão aparente, e as vezes nem tem mesmo uma razão, pois a motivação é diferente para cada pessoa, coisas obvias para alguns, podem ser grandes mistérios para outros."

Gosto do jeito dele de pensar, em como coloca as coisas, queria ter a mente livre assim...

"Não sei, acho que não quero mais entender, são coisas que não valeram a pena, coisas que não me levaram a lugar algum, acho que só quero esquecer..."

"Como assim?"

" São coisas que eu passei, que não precisava ter passado eu acho, não acho que eu entenderei, não me levaram a lugar nenhum"

"Sobre você precisar ou não passar por elas, acho que nunca saberemos, mas não existe essa de "não me levaram a lugar nenhum", essas coisas te trouxeram até aqui, não sei se isso foi bom ou ruim, mas elas trouxeram, tudo sempre nos leva a algum lugar, as pessoas têm mania de achar que só por que não chegaram aonde queriam, não chegaram a lugar algum, sempre chegamos."

"Se você não sabe para onde quer ir, tanto faz o caminho que tomar"

"Gosto de Alice no pais das maravilhas"

" Acho que se enquadra mais no meu caso, eu nem sei onde eu quero ir, então pra mim todo lugar é lugar nenhum"

"Então você chegou até aqui, agora você tem que descobrir se isso é bom ou ruim"

Foi engraçado meu primeiro pensamento foi que obviamente era ruim, eu estava internado em um hospital na ala psiquiátrica, mas eu não sei onde eu estaria se não estivesse aqui, se eu tivesse "aguentado" será que teria melhorado? Eu estaria feliz agora?

"Tenho certeza que você está se fazendo as perguntas erradas pra variar..."

Lian estava inspirado hoje, ou apenas motivado a me tirar de meus devaneios...

"Que perguntas erradas?"

"Deve estar pensando: o que estaria fazendo se não estivesse aqui?"

Bingo! quando estou conversando com ele sinto que minha cabeça é uma bola de cristal transparente e que ele pode ver através dela

"Como você faz isso?"

"Péeeh! Pergunta errada novamente, acabamos de falar que não precisamos entender tudo e não é difícil adivinhar o que as pessoas pensam sobre determinados assuntos, as pessoas sempre se perguntam onde estariam, ou se seriam mais felizes, mas essa obviamente não é a questão que importa."

"Então qual a questão que importa senhor das coisas obvias?"

Ele riu jogando a cabeça para trás, ele fazia isso quando estava se divertindo as minhas custas, não me irritava, pelo contrário eu gostava de fazê-lo rir, me sentia mais leve quando ele ria.

"Hora, mas não é obvio? As perguntas certas são: O que eu estou fazendo aqui? Eu estou feliz aqui? O aqui e o agora é o que importam, o que aconteceu é o que importa, a não ser que você seja amigo do Doctor Who e não tenha me contado, não dá pra voltar no passado, então não faz sentido se remoer por ter virado à esquerda e não a direita, fantasiando que a direita te levaria a um lugar melhor, e não é só por que as coisas parecem ruins agora que elas não podem te levar a algo bom, a melhor pergunta a se fazer depois de descobrir o que está fazendo, é o que eu quero fazer?

Acho que ele acabou de me passar lição de casa, tenho o que pensar o dia todo quando voltar pro meu quarto, e é o que eu faço, me despeço dele e volto, vou tomar um banho, preciso esvaziar a minha mente, antes de enchê-la outra vez. 

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