04.Encontro

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E meu plano ridíc... sensacional teria dado certo, se a pessoa tivesse aberto a porta, fiquei 5 minutos esperando escondido e nada, bati de novo e corri, parecia àquelas crianças travessas que apertam a campainha das casas e saem correndo como se fugissem da polícia, comecei a me sentir muito idiota, então parei e bati com mais força na porta, para minha surpresa ela se abriu, primeiro fiquei sem reação, mas logo vi a solução para o meu problema, era só entrar deixar o caderno sair, simples assim, o que poderia dar errado?

Entrei no quarto e reparei que ele estava estranhamente limpo, cama arrumada, nenhum objeto pessoal sobre o criado mudo, nem chinelos próximos à cama, não abri os armários, mas me ocorreu que estivessem vazios, pensei que o paciente já tivesse tido alta, me senti mal por um instante, não pela pessoa ter tido alta, mas sim por eu estar tão desnorteado a ponto de alguém ser internado do meu lado e ir embora sem eu nem ao menos notar. Esses pensamentos só duraram até eu me virar para a janela.

Ele estava lá sentado em uma cadeira de madeira de frente para outra cadeira vazia, distraído olhava pela janela parecia estar absorto em seus pensamentos, ele se parecia comigo, era magro, mas estava mais saudável que eu, o cabelo era loiro também mas diferente do meu que estava opaco e cinza, o dele era brilhante e mais próximo do dourado, ele era bem branco mas não tinha a aparência de fantasma que eu carregava, ele se virou em minha direção como se só agora tivesse notado minha presença, ele me olhou com uma tranquilidade invejável, os olhos azuis brilhavam com curiosidade, eu não me lembrava de onde, mas já havia visto olhos assim, os olhos me surpreenderam , não sei se foi porque os meus olhos estavam cinzas já havia muito tempo, ou porque me pareceu absurda a ideia de alguém com aqueles olhos estar internada na mesma ala que eu.

Ele me disse um olá e ficou aguardando a minha reação, eu travei e comecei a gaguejar uma desculpa:

"er... olá, me... me desculpe... eu bati, mas ninguém respondeu..."

Ele franziu o cenho

"Então quer dizer que não responder é sinônimo de convidar para entrar?"

Eu pensei em dizer que a porta estava aberta, e como abriu com a batida, achei que não teria problema deixar o caderno e ir embora, mas aquela pessoa estava sendo sarcástica e eu só sei reagir de uma forma ao sarcasmo...

"Num hospital psiquiátrico? Sim".

Eu levantei os braços para mostrar as bandagens nos pulsos, me arrependi logo em seguida, não acho que insinuar que você já deu início a sua sequência de autodestruição seja a melhor forma de se apresentar a uma pessoa cujo quarto você invadiu...

Ele me olhou incrédulo, depois sorriu e começou a rir, levantou os braços como quem se rende, pude ver suas bandagens, eram iguais as minhas.

"Touché... não tenho argumentos contra isso... sente-se".

Ele apontou para a cadeira vazia, pensei por um minuto, eu ainda tinha que tomar banho, e logo o minha psicóloga viria me procurar, por eu estar atrasado para nossa sessão mais uma vez, por outro lado, eu podia tomar banho mais tarde, e Zoraide sempre me diz que devo conversar com as outras pessoas, me vi curioso sobre meu novo vizinho, o que devia ter me impressionado de alguma forma, não me lembrava da última vez que algo me despertou curiosidade, quanto mais alguém, mas eu queria saber como uma pessoa com aqueles olhos chegou a iniciar a sequência de autodestruição, não sabia exatamente como explicar mas com certeza havia muita vida ali.

Sentei-me e lhe estendi o caderno, ele não pegou, ficou apenas olhando fixamente para ele.

"Então foi por isso que veio até aqui? Você leu?"

"Eu o encontrei próximo ao chafariz, abri em busca de pistas do dono, eu li sim confesso, mas só a primeira página".

Ele me olhou um pouco decepcionado, suspirou e se afundou na cadeira, fiquei sem entender a reação.

"esperava que tivesse lido tudo, faz um tempo que queria que as pessoas o lessem, mas não queria pedir, se eu pedisse não dariam opiniões sinceras, mas se você ficou entediado na primeira página ele deve ser péssimo... e...".

Eu o interrompi, o raciocínio dele era lógico, mas não era verdade, às vezes a pessoa não tomam cuidado com isso e acreditam em mentiras por parecerem verdades, só por não olharem as coisas por outro ângulo...

"Ei, cara, não entenda errado, eu não disse que não li por que fiquei entediado, o texto era bom, só não achei legal continuar a ler sem permissão, me pareceu algo bem pessoal, mas eu gostei de verdade...".

Ele se endireitou na cadeira e sorriu animado, parecia uma criança no Natal.

"Então você, vai ler os outros? Isso leia, leia agora mesmo, me diga o que acha, seja sincero, não poupe críticas ou elogios, vamos leia!"

Certo esse cara devia ter certo grau de hiperatividade, eu acho que já fui assim, me veio à mente uma vaga lembrança de quando eu era criança, eu devia ter uns 13 anos e havia ganhado o concurso de redação das escolas da cidade, eu queria que todos lessem minha redação, acho que eu agia da mesma forma quando pediam pra ler ou falavam que tinham lido, e me lembro também de como era difícil conseguir opiniões sinceras, eu entendia perfeitamente isso, as pessoas contando meias verdades ou medindo palavras para falar com você, como se você não pudesse lidar com a opinião delas, mesmo que depois você vá descobrir, porque elas falaram para outras pessoas ou invés de falar para você, engraçado como as pessoas tentam proteger nossos sentimentos quando deviam ser sinceras, e nos agridem sem piedade quando deviam ser no mínimo educadas. No fim o meu devaneio causou um silencio constrangedor, então fiquei meio sem graça, e não tive escolha, acabei abrindo o caderno e lendo a segunda página em voz alta...


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