AO LONGE, A GENTE SENTE A BRISA

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  Um dia quem sabe eu consiga expressar - nem que seja para mim mesmo - o estado em que me encontrava quando comecei a me afastar da vida, de mim mesmo e de quem me amava (e ainda ama). Um dia quem sabe eu consiga sopesar, em argumentos, tudo o que passava na minha mente quando eu ia embora de tudo, quando não dava importância para quase nada, quando carregava minhas fixações para cá e para lá sem a menor esperança de que um dia poderia haver o contato com alguém. Quem sabe um dia eu consiga. Mas até hoje, cinco anos e meio após minha separação, há mais de vinte anos sem compartilhar mais do que três horas com minha mãe e irmãos, e sem sentir no meu íntimo o peso de datas que antes eram tão importantes, eu não consigo.
Por enquanto, tentando me reaproximar de mim mesmo, eu desço no meu prédio para ver as flores que crescem e fenecem (uma em especial hoje acordou toda apagada), para conversar um pouco com alguém (enquanto tento me virar na vida, o que está sendo absurdamente difícil), para rezar um pouco por alguém de que me lembre (estando presente aqui comigo, ou distante, tanto fisica quanto mentalmente), para ler algo do Novo Testamento que eu tenho (comentado, embora eu me distraia mais com o texto bruto mesmo), ou para ver um pouco o Sol. Faço isso sabendo que muito de minha vida está nas mãos absolutas de Deus, e que embora eu tenha que tentar, e tentar, e tentar, muitas vezes não tenha solução, e eu tenha que me sujeitar aos fatos. Aos duros fatos que nos conduzem na vida e que nos fazem sofrer infinitamente, por vezes.
Penso de vez em quando em pessoas que se foram. Penso também em pessoas que se ocupam de mim. Penso em outras que me ajudam, por vezes, de todas as formas que conseguem imaginar. E penso também em pessoas que, aqui no meu dia a dia, me acompanham. Pessoas que me vêem meio destrambelhado às vezes, tentando - às vezes sem conseguir - lidar com os desafios mais corriqueiros da vida. Pessoas que sabem como eu já estive, vencido pela paixão, pelo amor, e pela raiva, e que viram como eu, a duras penas, consegui me recuperar, aos poucos, se bem que quase sem forças, e com isso conseguir lidar melhor com o meu dia a dia. Eu não entro aqui em detalhes, mas saibam que fui às vezes além do que eu podia, realmente. Fui para além da fome, do esforço, do cansaço, e até mesmo por vezes da esperança. Mas também aos poucos fui me aproximando do mundo, dos outros e de mim mesmo, e com isso tendo maior confiança em mim. Algo pequeno, eu sei, mas algo de que eu fazia questão de ter para poder apenas por vezes olhar para o dia seguinte. Porque passei pelo menos umas quatro vezes nos últimos vezes sem saber como iria ser o amanhã. O amanhã, mesmo, como amanhã é sexta-feira.
Mas noto que para que possamos nos defrontar melhor com o mundo não podemos o tempo todo estar imersos em nós mesmos. Noto que para que possamos melhor enfrentar o mundo e a nós mesmos precisamos olhar também melhor para fora, sendo que muitas vezes esse "fora" é anos atrás, muitos quilômetros de distância, muitas meditações internas e sofridas, muitos choros contidos ou jogados para dentro e para fora. Para melhor olharmos o mundo precisamos muitas vezes melhor olhá-lo como um mundo de convivência e de amor. Isso pode parecer bobo, falando assim, mas lhes digo que não é. Pois acordo todo dia às 5h, sofrendo de depressão brava, e de outros males sem cura, e luto sem parar, sem descanso mesmo (agora, acabo de fazer um teste para uma empresa do ramo de treinamento), mas, para melhor lidar comigo mesmo e com o mundo, preciso na verdade mesmo de melhor olhar o mundo como um todo. Mesmo sabendo que tem há logo ali um trem disposto a me destruir. Estes dias consigo esse melhor contato com o mundo olhando as flores. Recordando uma pessoa que me conheceu, e que hoje floresce. E tentando me entender como uma flor tentando não morrer. Ou tentando quem sabe deixar um pouco de seu aroma por ali. Como se fosse seu último dia. Porque, para as flores, muitas vezes este é realmente o seu último dia.  

Para viver melhor a vida - CrônicasWhere stories live. Discover now