HOUVE UM TEMPO

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Houve um tempo em que acordar cedo tinha seu significado. Em que as horas que passavam apareciam no relógio, em que os compromissos eram inadiáveis, em que tudo estava na ponta da memória - cada gesto, cada roupa, cada momento.
Houve um tempo em que corríamos atrás dos ônibus que passavam. Em que nos esforçávamos para passar pelos corredores, e em que torcíamos para chegar a tempo.
Houve um tempo em que as pessoas na rua apareciam como colegas de trabalho, tocando seus dias como nós, visando sustentar estilos de vida que nada tinham de diferenciados. Houve um tempo em que distinguíamos as pessoas pelo olhar nos seus olhos - de pressa, de medo, de preocupação.
Esse tempo passou, e avançamos rumo a uma vida que não divisávamos naquele tempo. Em que passamos a ordenar nosso tempo por outras coisas, por outras pessoas, por outros trabalhos. E em que entendemos o que é olhar o mundo de fora. Como se nele fôssemos estrangeiros.
Muitos filósofos e escritores viveram assim boa parte do tempo. E assim sendo aprenderam a olhar o destino dos seus semelhantes que já não o eram com a distância exigida para ter mais - ou menos - compaixão. É quase um luxo chegar a esse ponto.
Pois muitos continuam suas vidas de acordo com o tempo sendo que muitas vezes mal percebem o quanto ela radica em uma linha reta rumo a lugar algum. Olham para o mundo como se ele fosse e precisasse ser assim.
Mendigos, escritores e filósofos (e alguns diriam, poetas) possuem por vezes o privilégio de olhar o mundo correndo à sua frente sem dele participarem. E por vezes até escrevem algo a respeito. Por vezes até possuem algum talento e esclarecem algo que passa despercebido para a maioria. Algumas vezes tornam-se Bukowski.
Quem passa por isso muitas vezes não consegue mais acreditar em qualquer coisa. Assume um olhar distante e desiludido, e na maioria das vezes olha o que acontece e simplesmente deixa passar. Não assume lado. Prefere não se envolver. Seu olhar passa a ser outro.
Difícil é olhar o mundo da mesma forma depois que se passa por isso. Difícil é dar tanta importância a coisas pelas quais o mundo apenas passa ou deixa passar.
Só muitas vezes depois dessa experiência o homem particular consegue olhar novamente o Sol nascendo. A chuva caindo. O cachorro passando. O homem correndo.

Para viver melhor a vida - CrônicasWhere stories live. Discover now