capítulo 7:DUELO DE FIDALGOS

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O almoço foi pouco alegre, não obstante aquele excelente presunto, o queijo apimentado e as garrafas do pobre notário.
Começavam todos a inquietar-se pelo mau aspecto que os acontecimentos tomavam.
Aquele estado de coisas não podia de modo algum durar muito.
O Corsário Negro e os seus dois companheiros discutiam vários planos, mas nenhum Lhes pareceu bom.
Cogitavam em descobrir algum novo projecto, que lhes fornecesse o meio de sair daquela situação, que de momento para momento se tornava mais dificil e perigosa, quando um terceiro indivíduo veio bater à porta do notário.
Desta feita não se tratava de um criado, mas sim de um fidalgo castelhano armado de espada e punhal, porventura algum parente do noivo ou algum padrinho.
- Com mil raios! - exclamou Carmaux. - É uma procissão de gente que vem a esta maldita casa!...
O castelhano, vendo que ninguém se apressava a abrir, começara a redobrar as pancadas, levantando e deixando cair continuamente o pesado batente de ferro. Aquele homem devia por certo estar muito impaciente e era provavelmente bem mais perigoso que o mancebo e o criado.
- Vai abrir, Carmaux - ordenou o Corsário Negro.
- Receio, comandante, que não seja fácil prendê-lo e amarrá-lo.
Asseguro-vos que é um homem forte e fará uma resistência desesperada.
- Eu cá estou, e bem sabes que tenho braços robustos.
O Corsário Negro, tendo avistado ao canto da sala uma espada, alguma velha arma de família que o notário teria conservado, pegara nela e, depois de experimentar a elasticidade da lâmina, pusera-a à cinta, murmurando:
- Aço... Toledo; dará que fazer ao castelhano.
Carmaux e o negro abriram a porta, que começava a dar de si sob as furiosas e incessantes marteladas, e o fidalgo entrara com olhar furibundo, a fronte carregada e a mão esquerda no punho da espada, dizendo com voz colérica:
- É preciso empregar um canhão para entrar nesta casa. . .
O recém-vindo era um belo homem de seus quarenta anos, alto, robusto e arrogante, olhos pretos e espessa barba também preta que lhe dava um aspecto marcial.
- Perdoai, senhor, se nos demorámos - respondeu Carmaux, curvando-se grotescamente diante dele -, mas estávamos muito ocupados.
- A fazer o quê?... - perguntou o castelhano.
- A tratar do senhor notário.
- Então ele está doente?
- Foi atacado de uma febre fortíssima, senhor.
- Chama-me conde, birbante.
- Desculpai, senhor conde; eu não tinha a honra de conhecer-vos.
- Ide para o diabo!... Onde está meu sobrinho?... Há duas horas queveio para aqui...
- Não vimos ninguém.
- Zombas de mim?... Onde está o notário?...
- Na cama, senhor.
- Conduz-me ao pé dele.
Carmaux, que queria atrai-lo para o fundo do corredor, antes de fazer sinal ao negro para pôr em acção a sua prodigiosa força muscular, pôs-se diante do castelhano; depois, mal chegou ao fundo da escada, voltou-se, bradando.
- Agora tu, compadre!
O negro atirou-se sobre o castelhano; este, que naturalmente estava em guarda e que dispunha de uma agilidade capaz de competir com a de um marinheiro, num salto transpôs os três primeiros degraus, derrubando Carmaux com um forte empurrão, e desembainhou resolutamente a espada, gritando:
- Ah! patifes!... Que significa este ataque?... Vou cortar-Lhes as orelhas...
- Eu vos explico o que este ataque significa - disse uma vo z.
O Corsário Negro assomara no patamar, de espada em punho, e começava a descer os primeiros degraus.
O castelhano voltara-se, sem, todavia, perder de vista Carmaux e o negro, os quais se retiraram para o fundo do corredor, pondo-se de guarda à porta. O primeiro empunhara o comprido cuchillo e o segundo armara-se de uma tranca de madeira, arma formidável nas suas mãos.
- Quem sois vós, senhor? - perguntou o castelhano, sem manifestar o menor medo. - Pelo trajo que vestis poderia julgar-se que sois um fidalgo; mas nem sempre o hábito faz o monge, e podereis ser até algum bandido.
- Eis uma palavra que pode custar-vos cara, meu fidalgo - replicou o Corsário Negro.
- Ora adeus!... É o que havemos de ver!
- Sois corajoso, senhor; tanto melhor. Mas aconselho-vos a que largueis a espada e vos rendais.
- A quem?
- A mim!
- A um bandido que prepara uma cilada para assassinar traiçoeiramente os homens?
- Não, ao cavaleiro Emilio da Rocha Negra, senhor de Vintemilhas.
- Ah!... Sois fidalgo!... Ao menos desejava saber porque é que o senhor de Vintemilhas tentava fazer-me assassinar pelos seus criados.
- É uma pura suposição a vossa, senhor; ninguém aqui pensou emassassinar-vos. Queria desarmar-vos e fazer-vos prisioneiro por alguns dias, nada mais.
- E porquê?
- Para vos impedir de avisardes as autoridades de Maracaibo de queme encontro aqui - respondeu o Corsário Negro.
- Dar-se-á o caso de que o senhor de Vintemilhas tenha contas aajustar com as autoridades de Maracaibo?
- Não morrem de amores por mim, ou antes, é Wan Guld que medetesta, e que estimava imenso apanhar-me, como eu estimaria tê-lo debaixo do meu poder.
- Não vos compreendo - disse o castelhano.
- Também não é coisa que vos interesse. Vamos a saber: rendeisvos ou não?
- Oh!... Pensais em tal? Um homem que usa espada ceder assimsem defender-se?
- Nesse caso forçar-me-eis a matar-vos. Não posso deixar-vos retirar, sob pena de nos perdermos, eu e os meus companheiros.
- Mas quem sois vós, afinal?
- Já devieis tê-lo adivinhado; somos os corsários da ilha das Tartarugas. Defendei-vos, senhor, que vou matar-vos.
- Acredito, pois que tenho de defrontar-me com três adversários.
- Não vos preocupeis com eles - disse o Corsário Negro, indicandoCarmaux e o negro. - Quando o seu comandante se bate, estão habituados a não se intrometer.
- Nesse caso, espero em breve pôr-vos fora de combate.
Vós ainda não conheceis o braço do conde de Lerma.
- Como vós não conheceis o do senhor de Vintemilhas.
Conde, defendei-vos!
- Uma palavra, se mo permitis. O que fizestes de meu sobrinho edo criado?
- Estão prisioneiros juntamente com o notário. Mas não vos inquieteis por eles. Amanhã estarão livres e vosso sobrinho poderá desposar a sua bela.
- Obrigado, cavaleiro.
O Corsário Negro inclinou-se levemente, depois desceu rápido os degraus e avançou para o castelhano com tal impeto que este foi obrigado a recuar dois passos.
Por alguns momentos, no estreito corredor, apenas se ouviu o tinir dos ferros. Carmaux e o negro, apoiados contra a porta, de braços cruzados, assistiam ao duelo sem proferir uma palavra, procurando seguir com a vista o fulmíneo esgrimir das espadas.
O castelhano batia-se esplendidamente, como espadachim valoroso.
Dados os primeiros passes, o Corsário Negro tinha readquirido a serenidade. Só raras vezes atacava, limitando-se a defender-se como se antes quisesse cansar o adversário e estudar-lhe o jogo.
Subitamente partiu a fundo. Tocar de terço a lâmina do adversário com um golpe seco, ligá-la de segunda e fazê-la ceder e cair, foi obra de um bote único.
O castelhano, ao ver-se desarmado, empalideceu, soltando um grito. A ponta cintilante da lâmina do Corsário Negro ficou um momento direita, ameaçando-lhe o peito; depois, de repente, ergueu-se.
- Sois um valente - disse, saudando o adversário. - Não querieis ceder a vossa arma; agora sou eu que a tomo, mas deixo-vos a vida.
O castelhano tinha ficado imóvel, com o mais profundo espanto desenhado no rosto. Parecia-lhe talvez impossível o encontrar-se ainda vivo.
Num impulso, avançou dois passos e estendeu a mão ao adversário, dizendo:
- Dizem os meus compatriotas que os corsários são homens sem fé e sem lei, que somente se entregam à pirataria nos mares; mas eu posso agora dizer como entre eles se encontram também homens valorosos que em cavalheirismo e generosidade podem ombrear com os mais perfeitos fidalgos da Europa. Senhor cavaleiro, aqui tendes a minha mão: obrigado...
O Corsário Negro apertou-lha cordialmente e, apanhando a espada caida e entregando-lha, respondeu:
- Guardai a vossa arma, senhor; e basta-me a vossa promessa deque até amanhã não fareis uso dela contra mim.
- Assim vo-lo prometo, cavaleiro, pela minha honra.
- Agora deixai-vos manietar, sem resistência. Sinto ter de recorrera este expediente, mas é indispensável.
- Fazei o que quiserdes.
A um sinal do Corsário Negro, Carmaux aproximou-se do castelhano e ligou-Lhe os pulsos, depois do que o entregou ao negro, o qual se apressou a conduzi-lo à sala superior, onde foi fazer companhia ao sobrinho e ao notário.
- Oxalá que tenha acabado a procissão - disse Carmaux, voltandose para o Corsário Negro.
- Pois eu estou bem persuadido de que, em breve, virá mais genteimportunar-nos - respondeu o capitão. - Todas estas desaparições misteriosas levantarão em breve graves suspeitas. Fariamos bem barricando a porta e preparando-nos para a defesa. Viste se haverá armas de fogo cá na casa?. . .
- Encontrei um arcabuz e munições, além de uma velha alabarda ferrugenta e uma couraça.
- O arcabuz talvez sirva...
O negro tinha voltado, deixando Wan Stiller de guarda aos prisioneiros. Auxiliado por Carmaux transportou para o corredor todos os móveis mais pesados, não sem provocar por parte do pobre notário uma avalanche de protestos.
Caixotes, armários, mesas, tudo foi amontoado de encontro à porta, de modo a barricá-la completamente.
Mal tinham concluído todos estes preparativos de defesa quando viram Wan Stiller descer a escada precipitadamente.
- Comandante - disse ele -, na rua estão agrupados vários populares que olham para cá.
- Ah! - exclamou apenas o Corsário Negro, sem que se Lhe alterasse um só músculo do rosto.
Subiu tranquilamente a escada e abeirou-se da janela que dominava a rua, ocultando-se por detrás das persianas.
Wan Stiller dissera a verdade. Umas cinquenta pessoas, divididas em vários grupos, enchiam a extremidade da rua.
Aqueles burgueses falavam animadamente, apontando para a casa do notário, enquanto às janelas das casas vizinhas se viam assomar os inquilinos.
- O que eu temia vai acontecer - murmurou o Corsário Negro, enrugando a fronte. - Pois bem, se também eu devo morrer em Maracaibo é porque estava escrito no livro do meu destino. Pobres irmãos, que ficam por vingar!...
Carmaux! Vem cá!
O marinheiro, ouvindo chamar, acorreu logo, dizendo:
- Aqui estou, comandante.
- Disseste-me que tinhas encontrado munições...
- Um barril de pólvora...
- Coloca-o no corredor, por detrás da porta, e põe-lhe uma mecha!
- Cáspite!... Vai a casa pelos ares?
- Sim, se for preciso.
- E os prisioneiros?
- Mal deles se os soldados quiserem prender-nos. Temoso direito de nos defendermos, e faremos isso sem hesitar.
- Ah!. Ei-los ai... - exclamou Carmaux, que não despregava os olhosda rua.
- Quem?
- Os soldados, comandante.
- Vai buscar o barril da pólvora e depois vem aqui ter com Wan Stiller. Não te esqueças do arcabuz.
Na extremidade da rua aparecera um destacamento de arcabuzeiros comandado por um tenente e seguido de uma multidão de curiosos.
Os soldados vinham perfeitamente equipados, como se fossem para a guerra, com espingardas, espada e punhais à cinta. Ao lado do tenente viu o Corsário Negro um homem idoso, de barba branca, armado de espada, e logo suspeitou que fosse parente do conde ou do noivo.
O destacamento abriu passagem por entre os burgueses que enchiam a rua e fez alto a dez passos da casa do notário, dispondo-se numa triplice linha e preparando as armas, como se tivessem de romper fogo.
O tenente observou por alguns momentos as janelas, trocou algumas palavras com o velho que lhe estava próximo, depois abeirou-se resolutamente da porta e deixou cair o pesado batente, bradando:
- Em nome do governador, abri!...
- Estão prontos, meus valentes?... - perguntou o Corsário Negro.
- Estamos, senhor - responderam Carmaux, Wan Stiller o negro.
- Vocês ficarão comigo, e tu, meu valoroso africano, sobe ao andarsuperior e vê se podes descobrir alguma trapeira que nos permita fugir pelos telhados.
Dito isto, abriu a janela e perguntou:
- Que desejam?...
O tenente, ao ver aparecer, em vez do notário, aquele homem de feições arrogantes e largo chapéu preto, adornado de comprida pluma também preta, ficara imóvel, atónito.
- Quem sois? - inquiriu o Corsário Negro.
- Eu procuro o notário.
- Respondo por ele, visto que não pode agora mover-se.
- Então abri; é ordem do governador.
- E se eu não quiser?
- Em tal caso não responderia pelas consequências. Deram-se nestacasa coisas assaz estranhas, meu fidalgo, e recebi ordem para averiguar o que aconteceu ao senhor Pedro Conxevio, ao criado, e ao tio, o senhor conde de Lerma.
- Se tendes empenho em o saber, dir-vos-ei que nesta casa estãotodos vivos e bem-dispostos.
- Dizei-lhes que desçam.
- É impossível - respondeu o Corsário.
- Intimo-vos a obedecer ou mando arrombar a porta.
- Fazei-o; mas advirto-vos de que atrás da porta mandei colocar um barril de pólvora, e que à primeira tentativa vossa para a forçar deitarei fogo à mecha e farei voar a casa com o notário, o senhor Conxevio, o criado e o conde de Lerma. Agora experimentai!
Ouvindo estas palavras, proferidas com serenidade, friamente, num tom que não admitia dúvidas sobre a tremenda ameaça, um frémito de horror sacudira os soldados e os curiosos; e até alguns se apressaram a safar-se, com receio de que a casa saltasse imediatamente pelos ares. Até o tenente havia recuado alguns passos.
O Corsário Negro deixara-se ficar tranquilamente à janela como se fosse um simples espectador, sem todavia perder de vista os arcabuzes dos soldados, enquanto que Carmaux e Wan Stiller, que estavam atrás dele, espiavam os movimentos dos vizinhos, os quais tinham acudido às varandas e terraços.
- Mas quem sois vós? - perguntou afinal o tenente.
- Um homem que não quer ser estorvado por quem quer que seja, e
muito menos pelos oficiais do governador -, respondeu o Corsário Negro.
- Intimo-vos a dizer o vosso nome.
- E eu não estou para isso.
- Obrigar-vos-ei.
- Eu farei voar a casa - replicou o Corsário Negro.
- Mas, estais doido!
- Tão doido como vós.
- Ah, insultais-me?
- Nada disso, meu caro senhor.
- Acabemos com isto!... Basta de brincadeira!
- Ah! Quereis? Pois bem. Carmaux... deita fogo ao barril de pólvora... 

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