capítulo 14:O FURACÃO

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Uma medonha tempestade varria o mar com fúria irresistivel. Rajadas tremendas sucediam-se com rugidos apavorantes, fazendo crepitar o velame e chegando a vergar a sólida mastreação.
Ouviu-se no espaço um fragor estranho, que recrudescia de momento para momento.
O mar tornara-se horrendo.
O Relâmpago, com o velame reduzido às minimas proporções, aceitara valorosamente a luta.
Navegava com desespero, mergulhando às vezes a extremidade das velas na espuma, mas os seus flancos poderosos não cediam ao embate formidável das vagas.
Em volta, e mesmo na tolda, caiam ramos de árvores, frutos de todas as espécies, canas-de-açúcar e montões de folhas que redemoinhavam, arrebatadas dos bosques e das plantações da próxima ilha do Haiti, enquanto verdadeiros borbotões de água se despenhavam ruidosamente sobre o convés.
Não tardou que à noite tenebrosa sucedesse uma noite de fogo. Relâmpagos deslumbrantes rasgavam as trevas, iluminando as águas e a nau com uma luz livida, enquanto entre as nuvens estalavam tremendos trovões.
O furacão tocava então o auge da intensidade.
O vento adquirira uma velocidade fulminante, e rugia, levantando verdadeiras trombas-d'água, que depois tombavam vertiginosamente.
O Corsário Negro, erecto na popa, de mão no leme, governava-o com firmeza.
A sua negra figura destacava-se em meio dos relâmpagos, assumindo algumas vezes proporções fantásticas.
Parecia um génio do mar, emergido dos abismos do grande golfo para medir as próprias forças com as da Natureza desenfreada.
Uma mulher tinha saído da câmara e subiu para o castelo, agarrando-se ao corrimão da escada com suprema energia, a fim de não ser derrubada pelos desordenados balanços do navio.
Vinha envolvida num pesado vestido de fazenda grossa, mas trazia a cabeça descoberta, e o vento fazia-lhe flutuar os soberbos cabelos loiros.
- Senhora! - bradou o Corsário Negro, que logo reconhecera a jovem flamenga. - Não vedes que aqui vos ameaça a morte?
A duquesa não respondeu, fez-lhe um gesto que parecia querer dizer: "Não tenho medo.", - Retirai-vos, senhora - disse o Corsário Negro, que se tornara mais pálido que de costume.
Em vez de obedecer, a corajosa flamenga subiu para o castelo, atravessou-o, segurando-se à corda do varandim, e resguardou-se entre a amurada e a popa do escaler grande, que
tinha sido arriado para obstar a que as ondas o levassem.
O Corsário Negro fez um sinal para que se retirasse, mas ela replicou com um gesto negativo.
- Mas aqui espera-vos a morte! - repetiu-Lhe ele. - Voltai para a câmara, senhora! Estar aqui é perigoso!
- Não! - retorquiu a flamenga.
- Mas que vindes aqui fazer?
- Admirar o Corsário Negro.
- E fazer-vos levar pelas ondas.
- Que vos importa isso?
- Mas eu não quero a vossa morte, compreendeis, senhora! bradou o famoso corsário num tom de voz que pela primeira vez se sentia vibrar num impeto apaixonado.
A duquesa sorria, mas não se moveu. Agachada naquele recanto, com as mãos agarradas à volta do seu pesado vestido, de cabelos ao vento, deixava-se banhar pela água que irrompia no castelo, sem despregar os olhos do Corsário Negro.
Este, compreendendo que tudo seria baldado, e talvez contente de ver tão perto aquela corajosa donzela que subira até ali, afrontando a morte, para admirar a sua audácia, não lhe repetiu a ordem de abandonar o castelo. Quando o furacão cedia ao navio um momento de tréguas, voltava os olhos para a duquesa e, involuntariamente, sorria. Por certo se admiravam um ao outro.
Todas as vezes que a observava, logo os seus olhos se encontravam com os dela, que tinham adquirido uma imobilidade quase vitrea, como nessa manhã, quando ela estivera na proa da nau espanhola.
Mas aqueles olhos, de que irradiava uma fascinação misteriosa, produziram no Corsário Negro uma perturbação que ele não compreendia. Até mesmo quando não a contemplava sentia que ela não o perdia de vista um só instante e experimentava o desejo irresistível de voltar a cabeça para aquele canto do navio.
Houve até um momento, em que as ondas investiam mais impetuosamente contra o Relâmpago, em que ele teve medo daquele olhar, pois que bradou:
- Não me olheis assim, senhora!... Jogamos a vida! Aquela inexplicável fascinação cessou depressa. A
duquesa cerrou os olhos e baixou a cabeça, cobrindo o rosto com
as mãos.
O Relâmpago estava então perto das praias do Haiti. A claridade dos relâmpagos tinha delineado elevadas costas flanqueadas ,de perigosos escolhos, de encontro aos quais podia despedaçar-se o navio.
A voz do Corsário Negro ecoou logo no meio dos rugidos das ondas e do vento.
- Uma vela nova no traquete!... Larga cutelos!...
Atentos a virar!
Toda a noite o navio corsário lutou desesperadamente contra a tempestade, conseguindo transpor o canal de Barlavento e desembocar naquele trato de mar compreendido entre as Grandes Antilhas e a ilha Bahama.
Ao alvorecer, quando o vento virara ao norte, o Relâmpago estava quase em frente do Cabo haitiano.
O Corsário Negro que devia estar extenuado daquela longa luta, e que tinha o fato alagado, quando pôde lobrigar o pequeno farol da cidade do Cabo entregou a cana do leme a Morgan, dirigiu-se depois para o escaler grande, ao pé da popa, próximo do qual ainda estava agachada a jovem flamenga, e disse-lhe:
- Vinde, senhora. Também eu vos admirei e creio que nenhuma mulher teria afrontado a morte como vós, para ver o meu Relâmpago lutar com o furacão.
A duquesa erguera-se, sacudindo a água que lhe ensopava o vestido e os cabelos. Olhou fixamente o corsário, sorrindo, e disse-lhe:
- Pode ser que nenhuma outra mulher tivesse ousado subir ao convés; mas eu posso orgulhar-me de ter visto o Corsário Negro governar o seu navio no meio de um dos mais terríveis furacões, e admirei a sua coragem e a sua audácia.
O Corsário Negro não respondeu. Estava diante dela, observando-a com olhos ardentes, enquanto um véu de tristeza lhe cobria a fronte.
- Sois valorosa - murmurou, mas tão brandamente que só ela o poderia ouvir.
E, suspirando, acrescentou:
- Pena é que a triste profecia da cigana faça de vós uma mulherfatal.
- De que profecia quereis falar?... - perguntou a duquesa, com espanto.
O Corsário Negro, em vez de responder, murmurou:
- São loucuras!
- Sois supersticioso?
- Talvez... as profecias realizam-se algumas vezes!
Contemplou as ondas que vinham quebrar-se contra os flancos do navio com rugidos cavos, e mostrando-as à sua interlocutora, disse em tom triste:
- Perguntai a eles, se podeis... Ambos eram belos, moços, fortes eaudazes, e ambos dormem sob aquelas ondas, no fundo do mar. A fúnebre sina cumpriu-se, e talvez se cumpra também a minha, porque sinto que aqui, no coração, se ergue uma chama gigantesca, sem que eu possa apagá-la. Seja!... Cumpra-se o Destino se assim está escrito: o mar não me apavora e onde repousam meus irmãos também eu poderei descansar... mas mais tarde... quando o traidor me houver precedido.
Ergueu os ombros, fez com ambas as mãos um gesto de ameaça, depois desceu do castelo, deixando a duquesa atónita com aquelas palavras que não podia compreender.
Três dias depois, quando o mar já acalmara, o Relâmpago, impelido por ventos de feição, chegava à vista da ilha das Tartarugas, o formidável ninho dos corsários do grande golfo.

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