Capítulo 5:O ENFORCADO

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Quando o Corsário Negro e os seus companheiros chegaram à Praça de Granada era tal a escuridão que não se distinguia uma pessoa a vinte passos de distância.
Reinava na praça um profundo silêncio.
Encostando-se às paredes das casas, ou escondendo-se por detrás dos troncos das palmeiras, o Corsário Negro,
Carmaux e o negro adiantaram-se vagarosamente, de ouvidos atentos, olhos bem abertos e mãos nas armas, procurando chegar ao pé dos justiçados sem que alguém os visse.
Estavam já a poucos passos da primeira forca, da qual pendia, bamboleando levemente, servido pela viração do Norte, um pobre diabo quase nu, quando o Corsário Negro apontou aos companheiros uma forma humana que se agitava à esquina do palácio do governador.
- Com mil tubarões! - resmungou Carmaux. - Ali está a sentinela...Este homem é capaz de vir estragar-nos tudo...
- Mas Moko é forte - disse o negro. - Eu irei deitar as unhas àquelesoldado.
- Para ele te varar as tripas, compadre.
O negro sorriu, mostrando duas fileiras de dentes brancos como marfim, e tão agudos que fariam inveja a um tubarão , dizendo depois:
- Moko é astuto e sabe rastejar como as serpentes que encanta.
- Vai, então - disse-lhe o Corsário Negro. - Antes de te tomar aomeu serviço quero ter uma prova da tua audácia.
- Tê-la-eis, meu senhor. Agarrarei aquele homem como noutros tempos agarrava os jacarés na lagoa.
Tirou da cinta um cordão fino de couro entrelaçado, que terminava num anel, um verdadeiro laço semelhante aos que usam os vaqueiros mexicanos para dar caça aos touros, e afastou-se vagarosamente, sem fazer o menor ruido.
O Corsário Negro, escondido atrás do tronco de uma palmeira, observava-o atentamente, admirando talvez a audácia, daquele negro que, quase desarmado, ia defrontar um homem bem armado e certamente corajoso.
- Tem figados, o compadre - disse Carmaux.
O Corsário fez um gesto afirmativo, mas não proferiu uma palavra. Continuava a observar o africano, o qual rastejava agora como uma serpente, aproximando-se cautelosamente do palácio do governador.
O soldado afastava-se então do ângulo, dirigindo-se para o portão.
Estava armado de uma alabarda e cingia uma espada.
Vendo que ele lhe voltava as costas, Moko rastejava mais apressado, segurando na mão o laço. Chegado a dez passos, ergueu-se rapidamente, fez girar no espaço duas ou três vezes o cordão e depois lançou-o com mão firme.
Ouviu-se um leve sibilo, depois um grito sufocado e o soldado caiu por terra, largando a alabarda e agitando aflitivamente pernas e braços.
Moko, com um salto de leão, caira-Lhe em cima.
Amordaçá-lo fortemente, levantá-lo nos braços como se fosse uma criança, foi obra de poucos momentos:
- Ei-lo - disse, atirando-o aos pés do capitão.
- És um valente... Amarra-o a esta árvore e segue-me.
O negro cumpriu a ordem, auxiliado por Carmaux; depois reuniramse ambos ao Corsário Negro, que observava os enforcados.
Chegados a meio da praça, o capitão parou diante de um justiçado que estava vestido de vermelho e que, por amarga irrisão, tinha nos lábios uma ponta de charuto.
Ao vê-lo, o Corsário Negro soltou verdadeiro grito de horror.
- Malditos!... - exclamou. - Ainda o último sarcasmo...
A sua voz, que parecia o rugido longínquo de uma fera, apagou-se num lancinante soluço.
- Senhor - disse Carmaux comovido -, sede forte.
O Corsário Negro fez um gesto e apontou o enforcado.
- Imediatamente, capitão - respondeu Carmaux.
O negro tinha trepado à forca, segurando nos dentes o punhal do Corsário e Cortou de um só golpe a corda, depois desceu devagarinho o cadáver.
Carmaux amparara-o de baixo. Conquanto a putrefacção já tivesse começado a decompor as carnes do Corsário Vermelho, aquele recebeu-o brandamente nos braços e envolveu-o na capa preta que o capitão lhe dava.
- Vamos - disse o Corsário Negro com um suspiro. - A nossa missão está cumprida, o oceano espera o cadáver da valorosa vitima.
O negro pegou no cadáver, ajeitou-o nos braços, cobriu-o com a capa, e logo a seguir abandonaram a praça, tristes e silenciosos. Mas, quando chegaram à extremidade, o Corsário Negro voltou-se, olhando ainda uma vez para os catorze enforcados cujos corpos se destacavam lugubremente nas forcas, e disse com voz magoada:
- Adeus, valorosos desgraçados, adeus, fiéis companheiros do
Corsário Vermelho. O Corsário Negro breve vingará a vossa morte. Depois, fitando com olhar ardente o palácio do governador, que se encontrava ao fundo da práça, acrescentou:
- Entre nós dois, Wan Guld, está a morte...
Puseram-se a caminho, ansiosos por sair de Maracaibo e alcançar o mar para de novo embarcarem no navio corsário.
Já nada mais tinham que fazer naquela cidade, em cujas ruas se não sentiam seguros, depois da aventura da taberna.
Tinham percorrido duas ou três vielas desertas , quando Carmaux, que ia à frente de todos, julgou lobrigar vultos humanos, meio escondidos sob a escura arcada de uma porta.
- Devagar - murmurou para os companheiros. - Se a vista não meengana, parece-me que está ali gente que nos espera.
- Onde? - perguntou o corsário.
- Acolá debaixo.
- Talvez ainda os homens da taberna?
- Com mil tubarões... Serão os cinco vascongados com as suas navalhas?
- Com cinco podemos nós e pagarão bem cara a cilada - disse ocapitão, desembainhando a espada.
- O meu sabre de abordagem poderá medir-se com as navalhas! disse Carmaux.
Três homens, envoltos em grandes capas, tinham-se destacado do ângulo de um portão que ocupava o passeio da direita, quando outros dois, que até então se tinham conservado ocultos por detrás de um carro abandonado, embargavam a passagem pelo passeio da esquerda.
- São os cinco vascongados - disse Carmaux. - Vejo brilhar as navalhas nas cintas.
- Encarrega-te dos dois da esquerda, que eu me encarrego dos trêsda direita - disse o Corsário Negro. - E tu, Moko, não te importes connosco e safa-te com o cadáver. Espera-nos à beira da floresta.
Os cinco vascongados tinham-se desembaraçado das capas, dobrando-as e pondo-as no braço esquerdo e abriram depois os cuchillos de folha larga como lâmina de espada.
- Ah!... Ah!... - disse o que tinha sido repelido por Carmaux. Parece que não nos enganámos.
- Largueza!... - bradou o Corsário Negro, que se tinha postado adiante dos companheiros.
- Um momento, cavalheiro - disse um vascongado adiantando-se.
- Que queres tu?
- Satisfazer uma pequena curiosidade.
- Qual?
- Saber quem sois, cavalheiro.
- Um homem que mata quem Lhe causa estorvo -, respondeu altivamente o Corsário Negro, avançando de espada em punho.
- Nesse caso eu vos direi, cavalheiro, que por nossa parte somoshomens sem medo, e que não nos deixaremos matar como aquele pobre diabo que vós pregastes na parede.
- Vosso nome e vossos titulos ou não saireis de Maracaibo. Estamos ao serviço do senhor governador e devemos responder pelas pessoas que a esta hora andam passeando pelas ruas.
- Se o quereis saber, vinde perguntar-me o meu nome -, disse o Corsário, pondo-se rapidamente em guarda. - Vê esses dois da esquerda, Carmaux.
Este tinha desembainhado o sabre e marchado resolutamente para os dois adversários que lhe embargavam a passagem no passeio oposto.
Os cinco vascongados não se tinham movido, aguardando o ataque dos dois corsários.
Deviam ser cinco diestros, que certamente não desconheciam os mais famosos golpes.
Vendo que não se decidiam, o Corsário Negro, impaciente por abrir passagem, rompeu contra os três adversários que tinha na frente, vibrando botes à direita e à esquerda com velocidade fulminea, enquanto Carmaux atacava desesperadamente os outros dois.
Nem por isso os cinco diestros se tinham desconcertado.
Dotados de prodigiosa agilidade, davam saltos à retaguarda, parando os botes ora com as lâminas dos cuchillos, ora com as capas que tinham envolvido no braço esquerdo.
Os dois corsários, reconhecendo que tinham de haver-se com adversários perigosos, tornaram-se prudentes.
Mas quando viram o negro afastar-se com o cadáver e perder-se na escuridade da rua, voltaram furiosamente à carga, ansiosos por liquidar aquele incidente antes que algum guarda, atraido pelo tinir dos ferros pudesse vir em socorro dos vascongados.
O Corsário Negro, cuja espada era bem mais comprida que as navalhas dos adversários e cuja habilidade na esgrima era extraordinária, podia fazer bom jogo, enquanto Carmaux era obrigado a manter-se em guarda pela circunstância de se servir de um sabre bastante curto.
Os sete homens lutavam com fúria, mas em silêncio, todos absorvidos em parar e vibrar golpes. Avançavam, recuavam, saltavam ora à direita, ora à esquerda, deslocando fortemente os ferros.
Subitamente, o Corsário Negro, vendo um dos adversários perder o equilíbrio e dar um passo em falso, descobrindo momentaneamente o peito, avançou com um movimento fulmíneo.
A lâmina tocou e o homem caiu sem soltar um grito.
- E vai um! - disse o Corsário Negro, voltando-se para os outros dois. - Não tarda que vos tire a pele.
Os dois vascongados, sem o mínimo indício de terror, mantiveramse firmes diante dele; de improviso, porém, o mais ágil precipitou-se sobre o Corsário, curvando-se e apresentando à frente a capa enrolada no braço como se quisesse dar o golpe na parte baixa, o que, no caso de êxito, lhe abriria o ventre de lês a lés.
O Corsário Negro soube desviar-se com agilidade e meteu a fundo, mas a lâmina da espada esbarrou na capa do adversário. Tentou pôr-se de novo em guarda para parar os golpes que lhe jogava o outro vascongado, e quase logo soltou um grito de raiva.
A lâmina da espada partira-se ao meio no braço do homem.
Deu um salto à retaguarda agitando o pedaço da espada e gritando:
- A mim, Carmaux!...
O valente Carmaux, que ainda não tinha conseguido subjugar os seus dois adversários, conquanto os tivesse forçado a recuar até ao ângulo da rua, chegou, em três saltos, ao pé do capitão.
- Com mil tubarões!... - rugiu. Estamos metidos em boa...
- De dois desses malandrins vou eu dar conta - respondeu o Corsário Negro, tomando precipitadamente a pistola que tinha à cinta.
Ia disparar sobre o mais próximo quando viu um vulto gigantesco precipitar-se sobre os quatro vascongados, que se tinham juntado, julgando segura a vitória.
Aquele homem, chegado em tão boa ocasião, empunhava um grosso cacete.
- Moko!... - exclamaram o Corsário Negro e Carmaux.
O negro, em vez de responder, ergueu o cacete e desatou à pancada aos adversários com tal fúria que num abrir e fechar de olhos aqueles desgraçados estavam por terra, uns com a cabeça partida, outros com as costelas despedaçadas.
- Obrigado, compadre!... - gritou Carmaux. - Com mil raios! Que saraivada!
- Fujamos - disse o Corsário Negro. - Já nada temos quefazer aqui.
Alguns habitantes, despertados pelos gritos dos feridos, começaram a abrir as janelas para ver o que se passava.
Os dois corsários e o negro, desembaraçados dos cinco agressores, dobraram precipitadamente o ângulo da rua.
- Onde deixaste o cadáver? - perguntou o Corsário Negro ao africano.
- Já está fora da cidade - respondeu o negro.
- Obrigado pelo teu auxilio.
- Lembrei-me de que a minha intervenção podia ser-vos útil, e apressei-me a voltar.
- Não há ninguém na extremidade do povoado?
- Não vi ninguém.
- Então tratemos de bater em retirada antes que apareçam outrosadversários.
Iam pôr-se a caminho quando Carmaux, que se tinha adiantado para inspeccionar uma rua lateral, voltou apressadamente atrás, dizendo:
- Capitão, vem ai uma patrulha.
- De onde?
- Daquela viela.
- Teremos outra luta. Armas na mão, meus valentes, e para a frente!...
- Mas vós estais desarmado, capitão.
- Vai desarmar o biscainho que há pouco matei; à mingua de outraarma, também serve uma navalha.
- Se me dá licença, capitão, ofereço-lhe o meu sabre.
Eu sei servir-me daqueles cuchillos.
O valente marinheiro estendeu ao Corsário o sabre; depois voltou atrás e foi buscar a navalha de um dos biscainhos, arma formidável mesmo na sua mão.
O pequeno destacamento avançava a passo rápido. Talvez tivesse ouvido os gritos dos combatentes e o tinir das armas, e apressava-se a acudir.
Os corsários, precedidos de Moko, deitaram a correr cosidos com as paredes das casas; mas cento e cinquenta passos adiante ouviram os passos cadenciados de outra patrulha.
- Raios do inferno! - exclamou Carmaux. - Vamos ficar entalados no meio.
O Corsário Negro tinha parado, empunhando o sabre, pronto ao primeiro ataque.
- Seriamos traidos? - murmurou.
- Capitão - disse o africano. - Vejo avançar para nós oito homensarmados de alabardas e mosquetes.
- Amigos - disse o Corsário Negro, - chegou o momento de vendercara a vida.
- Ordenai o que devemos fazer e estamos prontos -, responderamCarmaux e o negro, com voz decidida.
- Moko!
- Patrão!
- Confio-te o encargo de levar a bordo o cadáver de meu irmão. Éscapaz disso? Encontrarás o nosso escaler na praia e pôr-te-ás a salvo com Wan Stiller.
- Sim, patrão.
- Nós faremos o possivel para nos desembaraçarmos dos nossos adversários; mas, se tivermos de sucumbir, Morgan sabe o que há-de fazer. Vai, leva o cadáver para bordo, e depois voltarás aqui a ver se ainda estamos vivos.
- Não tenho ânimo para o deixar, patrão; sou forte e posso servirlhe de muito.
- Tenho empenho que meu irmão seja sepultado no mar, como o Corsário Verde; e além de que tu podes prestar-nos maiores serviços indo a bordo do meu Relâmpago do que ficando aqui.
- Voltarei com reforços, senhor.
- Morgan virá, com certeza. Vai-te; ai vem a patrulha.
O negro não esperou nova ordem. Mas como a rua estava impedida pelas duas patrulhas meteu por uma travessa que ia dar ao muro de vedação de um jardim.
O Corsário Negro, tendo-o visto desaparecer, voltou-se para Carmaux, dizendo:
- Preparemo-nos para atacar essa patrulha que temos pela frente.Se com um ataque rápido conseguirmos abrir passagem, talvez possamos alcançar o campo e depois a floresta.
Estavam ainda no ângulo da rua. A segunda patrulha que o negro tinha avistado estava apenas a uns trinta passos de distância; mas a primeira ainda se não via, tendo naturalmente parado.
- Preparemo-nos - disse o Corsário Negro.
- Cá estou - disse Carmaux, que se escondera atrás de uma esquina.
Os oito alabardeiros tinham afrouxado o passo, como se temessem alguma surpresa; e até um deles, talvez o comandante, dissera:
- Devagar, rapazes! Esses patifes não devem estar longe.
- Nós somos oito - observou o soldado -,
enquanto que, pelo que nos disse o taberneiro, os corsários são
apenas três.
- Ah! O biltre do taberneiro que nos atraiçoou! - murmurou Carmaux. - Se me cai nas unhas abro-Lhe tamanho furo na barriga que pode por lá esvaziar todo o vinho que tiver bebido numa semana.
- Vamos a eles!... - rugiu o Corsário Negro.
Os dois corsários acometeram com impeto irresistivel contra a patrulha que ia voltar a esquina, vibrando golpes furiosos a torto e a direito com uma rapidez fulminante.
Os alabardeiros, surpreendidos por aquele inesperado ataque, não puderam resistir e dispersaram cada qual para seu lado. Quando voltaram a si do espanto, já o Corsário Negro e o companheiro estavam longe. Mas ao reconhecerem que haviam sido atacados apenas por dois homens, correram no seu encalço, gritando a bom gritar:
- Prendam! Prendam os corsários!...
O Corsário Negro e Carmaux corriam desesperadamente, sem saberem para onde. Tinham metido por um dédalo de vielas sem conseguir alcançar o campo.
Despertados pelos gritos da patrulha e alarmados pela presença daqueles formidáveis piratas, tão temidos em todas as cidades espanholas da América, os habitantes tinham-se levantado; ouvia-se abrir e fechar janelas e portas com grande ruido, enquanto algum tiro soava.
A situação dos fugitivos tornara-se de momento para momento mais grave; aqueles gritos e aqueles tiros podiam dar o alarme até ao centro da cidade e fazer acudir a guarnição inteira.
- Raios do inferno! - exclamava Carmaux, continuando a correr. Todo este chinfrim acabará por nos perder. Se não conseguimos meter para o campo, acabaremos numa forca com uma boa corda ao pescoço.
Correndo sempre, tinham chegado à extremidade de um beco sem saida.
- Capitão! - gritou Carmaux, que ia na frente. - Caimos numa ratoeira.
- Que queres tu dizer? - perguntou o Corsário.
- Esta viela não tem saida.
- Não há um muro que se possa escalar?
- Só há casas altas.
- Voltemos atrás, Carmaux. Os perseguidores ainda estão longe etalvez possamos encontrar uma nova rua, que nos leve fora da cidade.
Ia recomeçar a corrida, quando disse bruscamente:
- Não, Carmaux! Ocorreu-me agora uma ideia. Parece-me que comum pouco de astúcia podemos desnortear os nossos perseguidores.
Dirigiu-se para a casa que fechava o extremo do beco.
Era uma habitação modesta, de dois andares, construída de alvenaria, e parte de madeira, com um pequeno terraço adornado de vasos com flores.
- Carmaux! - disse o corsário. - Abre essa porta.
- Escondemo-nos nesta casa?
- Parece-me o melhor meio de desnortear os soldados.
- Perfeitamente, capitão. Fazemo-nos inquilinos sem pagar um ceitilde aluguer.
Com a ponta da sua comprida navalha forçou a fechadura e fez saltar o trinco.
Os dois corsários apressaram-se a entrar, fechando logo a porta, enquanto os soldados passavam na extremidade da viela, berrando sempre:
- Agarra! Agarra!
Os corsários, tacteando no meio da obscuridade, chegaram breve a uma escada, pela qual subiram sem hesitação, parando só no patamar superior.
- É preciso ver para onde vamos - disse Carmaux -, e conhecer osinquilinos. Que desagradável surpresa para estes pobres diabos!
Tirou da algibeira um fuzil e um pedaço de mecha e acendeu-a, soprando-lhe para avivar a chama.
- Olá!... Aqui está uma porta aberta - disse ele.
- E alguém que ressona - acrescentou o Corsário Negro.
- Bom sinal!... Quem dorme é gente de paz.
Entretanto, o Corsário Negro tinha aberto a porta, com cautela, para não fazer ruido, e entrava numa sala modestamente mobilada, onde se via uma cama ocupada por uma pessoa.
Pegou na mecha, acendeu uma vela que estava sobre uma velha caixa, e dirigiu-se para a cama, levantando resolutamente o cobertor.
Era um homem que estava deitado; um velho calvo, com barbichas e bigodes encrespados. Dormia tão regaladamente que não acordou com a luz.
- Não será decerto este homem que há-de incomodar-nos -, disse oCorsário Negro.
Agarrou-lhe num braço e sacudiu-o brutalmente, mas a principio sem resultado.
- Só disparando-lhe um trabuco aos ouvidos -, disse Carmaux.
Mas à terceira sacudidela, mais forte que as primeiras, o velho resolveu-se a abrir os olhos, ao ver os dois homens armados ergueu-se de um salto, arregalando os olhos apavorados, e exclamou com voz sufocada pelo terror
- Estou morto!
- Eh!., amigo! Tem tempo de morrer - disse Carmaux. - Parece-meque está mais vivo do que há pouco.
- Quem sois? - perguntou o Corsário.
- Um pobre homem que nunca fez mal a ninguém -, respondeu o velho.
- Não queremos fazer-Lhe mal algum, se responder ao que desejamos saber.
- Então Vossa Excelência não é ladrão?
- Sou um corsário das Tartarugas.
- Um cor... sá... rio! Ai! Agora é que eu estou morto!
- Já lhe disse que não lhe faremos mal.
- Que querem, então, de um pobre homem como eu?
- Antes de tudo, saber se está sozinho nesta casa.
- Sozinho de todo, senhor.
- Quem mora na vizinhança?
- Honestos burgueses.
- E você, quem é?
- Um pobre homem.
- Sim, um pobre homem que possui uma casa, enquanto eu nem cama tenho - disse Carmaux. - Ah!, minha raposa velha, o que tu tens é medo pelo teu dinheiro!
- Não tenho dinheiro, Excelentíssimo!
Carmaux desatou a rir.
- Um corsário com Excelência! Este homem é o maior ratão que tenho encontrado na minha vida!
O velho olhou de soslaio, mas absteve-se de se dar por ofendido.
- Vamos ao que importa - disse o Corsário Negro em tom ameaçador. - Que fazes em Maracaibo?
- Sou um pobre notário, senhor.
- Está bem. Ora fica sabendo que nós nos albergamos em tua casa,até que chegue o momento de nos irmos embora.
Não te faremos nenhum mal; mas toma conta que, se nos atraiçoas, separamos-te a cabeça do corpo. Ficamos entendidos?
- Mas que exigem de mim? - choramingou o desgraçado.
- Por ora, nada. Veste-te e não grites, senão pomos em prática aameaça.
O notário apressou-se a obedecer; mas o tremor era tal que foi preciso Carmaux ajudá-lo a vestir-se.
- Agora, amarra este homem - disse o Corsário Negro. - Repara que não fuja.
- Respondo por ele como por mim próprio, capitão. Vou amarrá-lode modo que não poderá fazer o menor movimento.
Enquanto Carmaux manietava o velho, o Corsário Negro tinha aberto uma janela que deitava para o beco, para ver o que se passava fora.
Parecia que as patrulhas já se tinham afastado, pois não se ouviam
os seus brados; mas várias pessoas, despertadas pelos gritos, apareciam às janelas das casas vizinhas e falavam em voz alta.
- Não ouviram? - gritava um homenzinho que mostrava comprido arcabuz. - Parece que os corsários tentaram um assalto à cidade.
- É impossível - respondiam algumas vozes.
- Ouvi os soldados a gritar.
- Foram escorraçados?...
- Acho que sim, pois que já não se ouve nada.
- Que audácia!... Entrar na cidade com tantos soldados como aqui
há!...
- Naturalmente queriam salvar o Corsário Vermelho.
- Mas já o vieram encontrar enforcado.
- Que decepção para esses bandidos!...
- Esperemos que os soldados agarrem outros para os enforcar... disse o homem do arcabuz. - Madeira não falta para levantar mais forcas.
Boas noites, vizinhos!
Até amanhã.
- Pois sim - murmurou o Corsário Negro. - Madeira não falta; mastambém nos nossos navios não faltam balas para arrasar Maracaibo. Um dia tereis novas minhas.
Fechou prudentemente a janela.
Entretanto, Carmaux rebuscara toda a casa e saqueara a despensa.
O corsário lembrara-se então de que não houvera tempo de cear na véspera, e como encontrasse uma ave e um bom pedaço de peixe assado, que talvez o notário tivesse reservado para o almoço, apressara-se a pôr uma e outra coisa à disposição do capitão.
Além desses petiscos tinha descoberto no fundo de um armário algumas garrafas de xerez e alicante.
- Senhor - disse Carmaux com a sua melhor voz, dirigindo-se ao Corsário -, enquanto os espanhóis correm atrás das nossas sombras, dê uma boa entrada neste peixe, e prove-me este pato bravo. Também encontrei umas certas garrafinhas que o nosso notário reservava talvez para as grandes ocasiões, e que vos darão por certo um bom humor.
Ah! Bem se vê que este amigo é apreciador de bebidas...
Veremos se tem bom gosto.
- Obrigado - respondeu o Corsário Negro, que de novo assumira umar lúgubre.
Sentou-se, mas pouco comeu. Provou o peixe, bebeu alguns cálices de vinho, depois ergueu-se, pondo-se a passear pela sala.
Carmaux, pelo contrário, não só devorou o resto como esvaziou um par de garrafas, com grande desespero do notário, o qual não se cansava de lastimar-se por ver desaparecer tão rapidamente o que tanto Lhe custara a mandar vir, com grandes despesas, da longínqua pátria.
Mas o marinheiro, de bom humor por ter bebido já bastante, foi tão amável que lhe ofereceu um cálice para lhe dissipar o terror experimentado e a raiva que o consumia.
- Caramba!... - exclamou. - Nunca imaginei que a noite se passassetão alegremente. Ver-se a gente entre dois fogos e ameaçados de perder a vida com o baraço ao pescoço, e em vez disso vir parar ao meio destas deliciosas garrafas, não era coisa que esperasse.
- Mas o perigo não passou, meu caro - disse o Corsário Negro. Quem nos assegura que amanhã os espanhóis, não nos tendo encontrado, não venham dar connosco? Está-se bem aqui, mas eu preferia estar a bordo do meu Relâmpago.
- Convosco, meu capitão, nada temo; vós, sozinho, valeis por cemhomens.
- Parece que esqueceste que o governador de Maracaibo é uma velha raposa e que tudo tentará para me deitar a mão.
Bem sabes que entre mim e ele se trava uma guerra de morte.
- Ninguém sabe que estais aqui.
- Poderá suspeitar-se. Além disso, esqueces os biscainhos! Eu creioque eles souberam que quem matou aquele fanfarrão do conde foi o irmão do Corsário Vermelho e do Corsário Verde.
- Talvez tenhais razão. Achais que Morgan nos mandará socorros O imediato não é homem para abandonar o seu comandante às garras dos espanhóis. É audaz, é valente, e não me surpreenderia que tentasse forçar a passagem, para fazer chover sobre a cidade uma saraivada de balas.
- Seria uma loucura que poderia sair-lhe cara.
- Eh!, quantas loucuras não temos nós cometido e quase sempre com feliz resultado?
- É verdade.
Carmaux sentou-se, bebendo aos sorvos um cálice de vinho; depois ergueu-se e dirigia-se para uma janela que se abria no patamar e dominava toda a rua quando viu o Corsário Negro entrar precipitadamente, dizendo:
- É de confiança o negro?
- De toda a confiança, comandante.
- Incapaz de atraiçoar-nos?
- Ponho as mãos no fogo por ele.
- Pois está ali.
- Viste-o?
- Anda rondando a rua.
- É preciso mandá-lo subir, comandante.
- E que faria ele ao cadáver de meu irmão? - perguntou o CorsárioNegro, de mau humor.
- Quando ele chegar o saberemos.
- Vai chamá-lo, mas prudência. Se te descobrem não respondo mais pelas nossas vidas.

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