capítulo 13:ENCANTOS MISTERIOSOS

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O Relâmpago navegava lentamente na direcção da costa de São Domingos e de lá meteu-se pelo amplo canal que existe entre aquela ilha e a de Cuba.
Embaraçado pela forte corrente do Golfo, o barco avançava muito a custo. O tempo mantinha-se sereno; se assim não fora, ter-se-ia visto obrigado a abandonar à fúria das ondas a grande presa que tão caro lhe custara, visto que os furacões se desencadeiam nos mares das Antilhas de modo terrivel.
O Relâmpago navegava placidamente sobre aquelas águas de esmeralda, tão transparentes que deixavam distinguir à profundidade de cem braças o leito alvissimo do golfo, matizado de corais.
No meio daquela nitida transparência viam-se peixes extravagantes cruzar-se em todas as direcções, brincando, perseguindo-se e devorando-se.
Dois dias depois da tomada do navio, tendo-se levantado um vento mais forte e muitíssimo favorável, o Relâmpago aventurava-se naquele trato de mar compreendido entre a Jamaica e a ponta ocidental do Haiti, dirigindo-se velozmente para as costas de Cuba.
O Corsário Negro, depois de ter permanecido quase sempre fechado no seu camarote, ao ouvir o piloto anunciar as altas montanhas da Jamaica, subira ao convés.
Mas estava ainda dominado por aquela inquietação que o acometera na mesma noite em que tinha recebido a visita da juvenil duquesa.
Não parava um momento. Passeava nervosamente pelo bailéu, sem dizer uma palavra.
Demorou meia hora na ponte, observando de quando em quando, mas distraido, as montanhas da Jamaica, que se desenhavam com nitidez no horizonte; depois desceu à tolda, recomeçando o seu passeio entre o mastro do traquete e o mastro grande, com as amplas abas do seu chapéu bem caidas para a testa.
Subitamente, como se tivesse sido assaltado por algum pensamento e obedecesse a uma tentação irresistível, subiu de novo à ponte e tornou a descer ao castelo de popa, parando ao pé da amurada.
Os seus olhos fixaram-se na proa do navio espanhol, distante apenas uns metros, tanto quanto era o comprimento do cabo que o trazia a reboque.
Estremeceu e fez menção de retirar-se, mas logo parou, enquanto o
seu rosto, muito carregado, se iluminava e a sua palidez se mudava numa cor levemente rosada.
Avistara na popa do navio espanhol uma forma branca apoiada na amurada. Era a jovem flamenga, envolta num roupão branco e com os louros cabelos caidos em desalinho e que a brisa maritima de momentos a momentos fazia flutuar.
Tinha o rosto voltado para o navio e os olhos fitos no Corsário Negro.
Mantinha-se numa imobilidade absoluta.
O Corsário Negro não fizera qualquer gesto, nem um leve cumprimento. Agarrara-se à amurada com ambas as mãos, como se temesse ser arrancado dali.
Parecia estar fascinado por aqueles olhos cintilantes.
Semelhante encanto, estranho num homem como ele, durou um momento apenas.
Como se se tivesse arrependido de se deixar vencer pelos olhos da donzela, desprendeu-se repentinamente e recuou um passo Olhou para o timoneiro, que estava a dois passos, depois para o mar, e seguidamente para o velame do seu navio, e então de novo para a branca figura, recuando agora sem poder desfitá-la.
Esta não se tinha movido.
O capitão do Relâmpago recuava sempre, como se não tivesse forças para fugir àquela fascinação. Tornara-se mais pálido que nunca.
Chegado à extremidade do castelo de popa, desceu para o tombadilho, onde parou alguns momentos; depois, sempre recuando, foi bater de encontro a Morgan, que acabava o seu quarto de vigia.
- Desculpai-me! - disse com modo embaraçado, enquanto um rápido rubor lhe coloria as faces.
- Observais também a cor do Sol, senhor? - perguntou o imediato.
- Que tem o Sol?
- Reparai...
O Corsário Negro ergueu os olhos e viu que o Sol, pouco antes refulgente, tomara uma cor avermelhada que fazia lembrar uma chapa de ferro incandescente.
Voltou-se para os montes da Jamaica e viu os seus cumes recortarem-se com mais nitidez no fundo do céu, como se fossem iluminados por uma luz bem mais viva do que antes.
Uma certa inquietação se manifestou logo no rosto do Corsário Negro e o seu olhar voltou-se para o navio espanhol, detendo-se na jovem flamenga, a qual ainda se conservava no mesmo sitio.
- Teremos um furacão - disse depois com voz abafada.
- Tudo indica, senhor - respondeu Morgan. - Não sentis este cheironauseante que se ergue do mar?
- Sinto, e vejo também que o ar começa a turvar-se. São estes osindicios dos tremendos furacões que se desencadeiam nas Antilhas.
- É exacto, capitão.
- Teremos de perder a nossa presa?
- Quereis um conselho, senhor?
- Dizei, Morgan.
- Fazei passar metade da nossa tripulação para o navio espanhol
- Parece-me que tendes razão. Penalizar-me-ia, pela minha gente, que aquela magnifica nau fosse parar ao fundo do Oceano.
- E a duquesa, quereis deixá-la ficar lá?
- A dama flamenga!... - disse o Corsário Negro, enrugando a fronte.
- Estará melhor no nosso Relâmpago do que ali.
- Sentirieis que fosse a pique? - perguntou o capitão, voltando-se para Morgan e fitando-o.
- Penso que essa duquesa pode valer alguns milhares de piastras.
- Ah, sim, é verdade! Terá de pagar o resgate.
- Quereis que a mande passar para bordo do Relâmpago, antes queas vagas o impeçam?
O Corsário Negro não respondeu. Tinha-se posto a passear pela ponte como se estivesse preocupado.
Assim continuou alguns minutos, até que, parando subitamente diante de Morgan, lhe perguntou de chofre:
- Acreditas que há mulheres fatais?
- Que quereis dizer? - perguntou o imediato, com espanto.
- Serias capaz de amar sem receio uma mulher?
- Porque não?
- Julgas que seja mais perigosa uma mulher formosa do queuma abordagem sangrenta?
- Algumas vezes, será; mas sabeis, comandante, o que dizem os corsários e os bucaneiros da ilha das Tartarugas, antes de escolher companheira entre as mulheres que os governos da França e da Inglaterra mandam para aqui à busca de marido?
- Nunca me preocupei com os casamentos dos nossos homens.
- Pois dizem, palavras textuais: "... Do que fizeste até aqui, mulher,não quero saber e absolvo-te, mas terás de dar-me contas do que fizeres de ora avante", e batem no cano da sua espingarda, acrescentando: "Aqui está quem me vingará, e se tu errares, repara bem, esta não costuma errar...",
O Corsário Negro encolheu os ombros, dizendo:
- Eu referia-me a mulheres bem diferentes dessas que os governosdo ultramar expedem para cá pela força.
Parou um momento, e depois, indicando a jovem duquesa, continuou:
- Que dizes daquela donzela?
- Que é uma das mais belas criaturas que se têm visto nestes mares das Grandes Antilhas.
- Não vos faria medo?
- Quem? Aquela dama ... Por certo que não.
- Pois a mim, faz.
- A vós? àquele que se chama o Corsário Negro? Estais caçoando,comandante?
- Não - respondeu o Corsário Negro. - Leio às vezes no meu destino; demais, uma cigana do meu pais prognosticou-me que a primeira mulher que eu amasse me seria fatal.
- Mau agoiro, capitão!
- E que dirias, se eu acrescentasse que essa cigana predisse, acerca dos meus três irmãos, que um morreria num assalto, em virtude de uma triste traição, e que os outros dois seriam enforcados? Sabes, tão bem como eu, que tudo isso se realizou.
- E vós...
- Que morreria no mar, longe da minha pátria, por causa de uma mulher.
- Por Deus! - exclamou Morgan, estremecendo. - Mas essa ciganapode ter-se enganado a respeito do quarto irmão.
- Não! - respondeu o Corsário Negro com voz lúgubre.
Meneou a cabeça, ficou um momento pensativo, e depois acrescentou:
- Pois seja!
Desceu do castelo da popa, foi à proa, onde tinha visto o africano a conversar com Carmaux e Wan Stiller e disse-lhes:
- Arreiem o escaler grande. Tragam para aqui a duquesa e todos que a acompanham.
Enquanto os dois corsários e o africano se apressavam a obedecer, escolhia Morgan trinta marinheiros para os mandar de reforço aos que já estavam no navio de linha, prevendo que muito breve seria preciso cortar o cabo de reboque.
Um quarto de hora depois, Carmaux e os seus companheiros estavam de volta. A duquesa flamenga, as duas criadas e os dois pajens subiram para bordo do Relâmpago, em cuja escada os aguardava o Corsário Negro.
- Tendes alguma comunicação urgente a fazer-me, meu amigo? perguntou a donzela, fitando-o.
- Tenho, senhora - respondeu o Corsário Negro, inclinando-se.
- E o que é?
- Que seremos obrigados a abandonar o navio à sua sorte.
- Porquê?... Somos acaso perseguidos?
- Não; é o furacão que nos ameaça e nos obrigará a cortar o cabode reboque. Vós conheceis talvez as fúrias tremendas deste grande golfo quando o vento o açoita.
- E tendes a peito não perder a vossa prisioneira, não é verdade, cavaleiro? - disse a flamenga, sorrindo.
- O meu Relâmpago é mais seguro do que a nau.
- Obrigada pela vossa gentileza.
- Não me agradeçais, senhora - replicou o Corsário Negro, com armeditabundo. - Talvez que este furacão seja fatal a alguém.
- Fatal! - exclamou a duquesa - E a quem?
- Ver-se-á.
- Mas porquê?
- Tudo está nas mãos do destino.
- Também temeis pelo vosso navio?
Um sorriso aflorou aos lábios do Corsário Negro.
- O meu navio pode afrontar os coriscos do céu e as iras do mar, eeu sou homem para o guiar através de uma tempestade...
- Bem sei, mas...
- É inútil insistirdes para obter mais ampla explicação, senhora.
Tudo dependerá da sorte.
Apontou-lhe para a câmara de popa e, tirando o chapéu, continuou:
- Aceitai a hospitalidade que vos ofereço, senhora. Eu vou afrontara morte e o meu destino.
Pôs o chapéu e subiu para o castelo de popa, enquanto a calmaria que até então reinava no mar se quebrava bruscamente, como se das Pequenas Antilhas viessem cem trombas de vento.
Os escaleres que transportavam para bordo da nau os trinta marinheiros que haviam regressado e a tripulação estava ocupada em içálos nos guindastes do Relâmpago.
O Corsário Negro, que subira ao castelo da popa, onde já o precedera Morgan, pusera-se a observar o céu do lado do Levante.
Uma grande nuvem bastante escura, de bordos tintos de um vermelho afogueado, erguia-se rapidamente no horizonte, impelida sem dúvida por um vento irresistivel, enquanto o Sol, quase no ocaso, escurecia cada vez mais, como se uma névoa se tivesse interposto entre os seus raios e a terra.
- No Haiti já o furacão esbraveja - disse o Corsário Negro a Morgan.
- E a esta hora as Pequenas Antilhas estão talvez devastadas acrescentou o imediato. - Dentro de uma hora também este mar estará medonho.
- Que farias no meu caso?
- Buscaria um refúgio na Jamaica.
- O meu Relâmpago fugir do furacão! - exclamou o Corsário Negrocom altivez. - Oh! Nunca!...
- Mas bem sabeis, senhor, como são formidáveis os furacões dasAntilhas.
- Sei, e afrontá-los-ei. Será o navio de linha que irá buscar salvamento naquelas costas, mas não o meu Relâmpago. Quem comanda os nossos homens a bordo da nau?
- O mestre Wan Horn.
- Um valente que virá a ser um famoso corsário.
Sabe sair das dificuldades sem perder a presa.
Desceu do castelo da popa, segurando na mão um porta-voz e, subindo à amurada, bradou com voz trovej ante:
- Cortai o cabo de reboque!... Eh, mestre Wan Horn, metei para aJamaica!... Esperamos nas Tartarugas!
- Está bem, comandante - replicou o mestre, que estava à proa danau esperando ordens.
Armou-se de uma machada, e de um só golpe cortou o cabo de reboque, e depois, voltando-se para os seus marinheiros, bradou, tirando o chapéu:
- À graça de Deus!
A nau virou de bordo, afastando-se para a Jamaica, enquanto o Relâmpago se internava audazmente entre as costas do Haiti e as de Cuba, no chamado canal de Barlavento.
O furacão avizinhava-se célere. A calmaria fora quebrada por furiosos pés-de-vento, que vinham da banda das Pequenas Antilhas, enquanto as vagas se avolumavam rapidamente, assumindo um aspecto pavoroso.
Parecia que o fundo do mar havia entrado em ebulição, pois se viam formar à superfície como que sorvedoiros espumantes, enquanto enormes colunas de água se erguiam e caiam com grande fragor.
O Corsário Negro, sempre sereno, não parecia preocupar-se com o furacão. Seguia com os olhos a nau, que se via capear no meio das ondas e que estava prestes a sumir-se no fosco horizonte, em direcção à Jamaica.
Quando a nau desapareceu, subiu ao castelo de popa e afastou o piloto, dizendo:
- Dá-me o leme!... Quero eu mesmo governar o meu Relâmpago!

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