capítulo 10: A BORDO DO RELÂMPAGO

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O Corsário Negro, tendo saído do meio das ilhotas e transposto o longo promontório formado pelos últimos contrafortes da serra de Santa Maria, lançara-se nas águas do mar das Caraíbas, navegando para o norte, ou seja, na direcção das Grandes Antilhas. O mar estava calmo, apenas levemente encrespado pela brisa da manhã.
Não se via navio algum. Os homens de sentinela, que ficaram no convés, bem observavam, mas nenhuma embarcação se via passar no horizonte.
O receio de encontrar os terríveis piratas das Tartarugas retinha os navios espanhóis dentro dos portos de Caracas, de Iucatão, da Venezuela e das Grandes Antilhas, enquanto não se encontrassem em número para formar uma esquadra.
Apenas os navios bem armados e equipados por numerosas tripulações ousavam ainda atravessar o mar das Caraíbas ou o golfo do México, sabendo como sabiam, por experiência, quanta era a audácia daqueles intrépidos piratas que tinham desfraldado a sua bandeira na ilha das Tartarugas.
Durante aquele primeiro dia nada sucedera a bordo do Relâmpago, depois de terem sepultado o pobre Corsário Vermelho.
O comandante não comparecera no convés nem no tombadilho, deixando a direcção das manobras ao imediato. Fechara-se no seu beliche, e ninguém tivera mais notícias dele, nem mesmo Carmaux e Wan Stiller.
Sabia-se, todavia, que levara consigo o africano, ou assim o suspeitavam, pois que nem o negro se avistava, nem se encontrava nalgum recanto do navio nem na estiva.
O que estariam fazendo no beliche, fechados à chave, ninguém o poderia dizer, nem mesmo o imediato, porque Carmaux, que quisera interrogá-lo, recebera como resposta um repelão, acompanhado de um gesto quase ameaçador, que queria dizer: "Não indagues do que não é da tua conta, se tens amor à vida".
Caída a noite, enquanto o Relâmpago colhia parte do seu velame por causa dos golpes repentinos do vento, que naquelas paragens quase sempre ocasionam desgraças,
Carmaux e Wan Stiller viram finalmente assomar na escotilha da proa a cabeça lãzuda do africano.
- Lá vem o compadre! - exclamou Carmaux. - Ora sempre vamos
saber se o patrão ainda está a bordo ou se foi conferenciar com os irmãos no fundo do mar. Aquele homem fúnebre é bem capaz disso.
- Estou por essa - disse Wan Stiller, sempre supersticioso. - Eu tenho-o mais por um espírito do mar do que por um homem de carne e osso como nós.
- Oh!, compadre! - disse Carmaux, ao negro. - Já era tempo de vires cumprimentar o compadre branco.
- Foi o patrão que me reteve - respondeu o africano.
- Há então grandes novidades? Que faz o comandante?
- Está mais triste do que nunca.
- Nunca o vi alegre, nem na Tartaruga; nunca o vi rir.
- Não se fartou de falar dos irmãos e de tremendas vinganças.
- Que cumprirá, compadre. O Corsário Negro é um homem que executará à risca o seu terrivel juramento e eu não queria encontrar-me nos lençóis do governador de Maracaibo e de todos os seus parentes. Wan Guld deve sentir um ódio implacável contra o Corsário Negro, mas este serlhe-á fatal.
- E conhece-se o motivo desse ódio, compadre branco?
- Diz-se que é muito antigo e que Wan Guld tinha jurado vingar-sedos três corsários antes de ter vindo para a América e ter oferecido os seus serviços à Espanha.
- Quando estava na Europa?
- Sim.
- Ter-se-iam então conhecido antes?
- Assim se diz, pois que enquanto Wan Guld se fazia nomear governador de Maracaibo compareciam em frente da ilha das Tartarugas três grandes naus, comandadas pelo Corsário Negro, pelo Vermelho e pelo Verde. Eram três corsários, três belos homens, corajosos como leões e marinheiros audazes e intrépidos. O Corsário Verde era o mais novo e o Negro o mais idoso, mas em valor nenhum era inferior ao outro e no manejo das armas não tinham rivais entre todos os corsários das Tartarugas. Esses três marinheiros deviam em breve fazer tremer os espanhóis em todo o golfo do México. Eram sem conta os navios por eles saqueados e as cidades expugnadas: ninguém podia resistir às suas três naus, as mais belas, mais velozes e melhor armadas de toda a pirataria.
- Faço ideia - respondeu o africano. - Basta ver este navio.
- Mas vieram para eles tristes dias - prosseguiu Carmaux. - O Corsário Verde, tendo partido na sua nau para paragens desconhecidas, caia em meio de uma esquadra espanhola, era vencido numa luta titânica, preso, conduzido a Maracaibo e enforcado por Wan Guld.
- Lembro-me disso - interrompeu o negro. - Mas o cadáver não foilançado às feras.
- Não, porque o Corsário Negro, acompanhado por alguns fiéis, conseguiu entrar de noite em Maracaibo e roubá-lo para o sepultar no mar.
- Sim, soube-se isso depois. Diz-se que Wan Guld, exasperado pornão prender também o irmão, mandou fuzilar as quatro sentinelas incumbidas de velar pelos enforcados da Praça de Granada.
- Agora chegou a vez ao Corsário Vermelho e também este foi sepultado nos abismos do mar das Caraibas; mas o terceiro irmão é o mais temivel e acabará por exterminar todos os Wan Guld da terra.
- Irá breve a Maracaibo, compadre. Pediu-me todas as informaçõespara dirigir contra a cidade uma imensa frota.
- Pedro Nau, o terrível Olonês, ainda está nas Tartarugas e é amigodo Corsário Negro. Quem poderia resistir a estes dois homens? Demais...
Interrompeu-se e, tocando no negro e em Wan Stiller, que lhe estava à ilharga, escutando em silêncio, disse:
- Vede-o!... Não faz medo aquele homem? Parece o deus dos mares!
O corsário e o africano tinham dirigido o olhar para o tombadilho.
O Corsário Negro estava lá, vestido de preto como sempre, com o seu largo chapéu caido para a testa e a grande pluma flutuando.
De cabeça inclinada para o peito, braços cruzados, passeava lentamente pelo tombadilho, sozinho e sem produzir o menor ruido.
Morgan, o imediato, velava na extremidade do tombadilho, mas não ousou interrogar o seu capitão.
- Parece um espectro - murmurou baixo Wan Stiller.
- E Morgan não representaria mal de seu companheiro - disse Carmaux. - Se um é funéreo como a morte, o outro não é mais alegre. Encontraram-se ambos. Oh!...
Um grito ecoara nas trevas. Descia do alto da gávea do mastro grande, onde se distinguia vagamente uma forma humana.
Aquela voz tinha bradado duas vezes:
- Navio ao largo, a sotavento!
O Corsário Negro interrompeu o passeio. Ficou por momentos olhando, imóvel, para sotavento, mas encontrando-se tanto em baixo não podia lobrigar um navio que estava a seis ou sete milhas de distância.
Voltou-se para Morgan, que também se debruçara na amurada, dizendo-lhe:
- Manda apagar os faróis.
Os marinheiros da proa, recebida a ordem, apressaram-se a cobrir os dois grandes faróis acesos, um a bombordo e outro a estibordo.
- Gajeiro! - bradou o Corsário Negro, mal a escuridão foi completaa bordo. - Onde navega esse barco?
- Para o sul, comandante.
- Na costa da Venezuela?
- Creio que sim.
- A que distância?
- Cinco ou seis milhas.
O Corsário Negro debruçou-se no varandim e lançou esta ordem:
- Homens à coberta!
Em menos de meio minuto os cento e vinte corsários que constituíam a tripulação do Relâmpago estavam a postos.
Aqueles piratas, reunidos no golfo do México, vindos de todas as partes da Europa e recrutados entre a Ínfima canalha dos portos do mar da
França, Itália, Holanda,
Alemanha e Inglaterra, dados a todos os vícios, mas descuidosos da morte e capazes dos maiores heroísmos e das mais incríveis audácias, nas naus corsárias tornavam-se mais submissos do que cordeiros, até se transformarem em tigres no combate.
Bem sabiam que o seu comandante não deixaria impune qualquer negligência e que a mais leve indisciplina seria castigada com um tiro de pistola na cabeça ou pelo menos com o abandono em alguma ilha deserta.
Quando o Corsário Negro viu todos os seus homens a postos, observando-os quase um a um, voltou-se para Morgan, o qual esperava ordens:
- Achas que aquele navio será...? - perguntou-Lhe.
- Espanhol, senhor - respondeu logo o imediato.
- Espanhóis! - exclamou o Corsário Negro com voz ( cava.
- Será uma noite fatal para eles, e muitos não chegarão a ver o solde amanhã.
- Assaltaremos aquele navio esta noite, senhor?
- Sim, metê-lo-emos a pique. No fundo do mar dormem meus irmãos, mas não dormirão sós.
- Pois seja, se assim o desejais, senhor.
Saltou para cima da amurada, segurando-se a um pateraz, e olhou para sotavento.
Em meio das trevas que cobriam o mar rumorejante, dois pontos luminosos, que não podiam ser confundidos com as estrelas que cintilavam no horizonte, corriam quase à flor da água.
- Estão a quatro milhas - disse.
- E continuam a seguir para o sul? - perguntou o Corsário Negro.
- Para Maracaíbo.
- O mal é deles. Dai ordem para virar de bordo e cortar o rumo àquele navio.
- E depois?
- Mandareis vir para o tombadilho cem granadas de mão, e mandareis assegurar tudo nas coxias e nos beliches.
- Meteremos a pique o espanhol?
- Meteremos, se puder ser.
- Perderemos os prisioneiros?
- Que me importam a mim os prisioneiros?
- Mas o navio pode levar riquezas.
- Na minha pátria ainda tenho castelos e valiosas propriedades.
- Falava pelos nossos homens.
- Para eles tenho eu oiro. Mandai virar de bordo.
à primeira ordem ouviu-se silvar a bordo do navio o apito do mestre. Os homens da manobra, com uma rapidez fulmínea e com perfeita concordância, largaram as velas enquanto o timoneiro tomava o braço do leme.
O Corsário Negro e Morgan não tinham deixado o tombadilho. Apoiados na travessa do varandim, um ao lado do outro, não perdiam de vista os dois pontos luminosos que sulcavam as trevas a menos de três milhas de distância.
Carmaux, Wan Stiller e o negro, todos três à proa, no castelo, conversavam baixo, observando ora o navio desconhecido que continuava tranquilamente a sua rota, ora o Corsário Negro.
- Má noite para aquela gente - dizia Carmaux. - Receio bem que ocomandante, com aquele rancor que tem no coração, não deixe vivo um só espanhol.
- Mas está-me parecendo que aquela nau é de alto bordo - observou Wan Stiller, que media a altura dos faróis pela distância da água. - Oxalá não seja uma nau de linha que vá juntar-se à esquadra do almirante Toledo.
- Ora adeus!. . Não é coisa que assuste o Corsário Negro. Ainda não houve navio que resistisse ao seu Relâmpago, e, além disso, ouvi o comandante falar de o meter a Pique.
- Caluda!
A voz do Corsário Negro rompera subitamente o silêncio.
- Homens da manobra!... Largai cutelos!
Os gajeiros desdobraram imediatamente as velas suplementares das gáveas e joanetes.
- A todo o pano! - exclamou Carmaux. - Parece que o espanhol navega com toda a velocidade, para assim obrigar o Relâmpago a largar cutelos e varredouras!
- Se eu te digo que temos de haver-nos com uma nau de alto bordo- repetiu Wan Stiller. - Olha como tem a mastreação?
- Tanto melhor! Teremos bom fogo de parte a parte.
Naquele momento uma voz robusta ecoou no mar. Vinha do navio inimigo e o vento trouxera-a até bordo do navio corsário.
- Olá!.. Navio suspeito a bombordo!
No tombadilho do navio corsário viu-se o Corsário Negro inclinar-se para Morgan, como se lhe dissesse alguma coisa em segredo, e depois afastar-se, bradando:
- Vou tomar o leme!... Homens do mar, avante!
Os dois navios distavam um do outro apenas uma milha, mas ambos deviam ser dotados de extraordinária velocidade, porque a distância não parecia diminuir.
Decorrera meia hora quando, no navio que se julgava ser espanhol, se viu um clarão iluminar fugazmente o convés e parte da mastreação, e logo uma fragorosa detonação ecoou sobre as negras vagas, perdendo-se nos horizontes longínquos, com um estampido cavo e prolongado.
Um momento depois, um sibilo bem conhecido dos corsários ouviuse no ar, e logo um enorme jacto de água se levantou a vinte braças da proa do navio corsário.
Nenhuma voz se ergueu entre a tripulação. Apenas um sorriso desdenhoso aflorou aos lábios do Corsário Negro, ante aquele primeiro emissário da morte.
O navio inimigo, depois daquele primeiro tiro de canhão, que significava um convite ameaçador para não o seguir mais, tomou resolutamente o rumo do golfo de Maracaibo.
O Corsário Negro, dando por aquela nova direcção, voltou-se para Morgan, que estava encostado à amurada, e disse:
- À proa!
- Começa o fogo?
- Ainda não; está muito escuro. Preparai tudo para a abordagem.
- Abordamos?
- Veremos.
Morgan desceu do tombadilho, chamou o mestre e dirigiu-se para a proa, onde quarenta homens estavam formados no castelo com as machadas de abordagem ao seu alcance e as espingardas em punho.
- A pé! - Comandou.
A esta e outras ordens incisivas, os quarenta homens da proa puseram-se à manobra silenciosamente, sem confusão, sob a vigilância do imediato.
Aqueles homens, se temiam o Corsário Negro, não tinham menos medo de Morgan, tão audaz como o chefe, corajoso e decidido a tudo.
Morgan, inglês de nação, tinha chegado recentemente à América, mas desde logo se destacara pelo seu espirito empreendedor e pela sua rara energia e audácia. Já havia feito as suas provas, soberbamente, sob as ordens do famigerado corsário Mansfield, mas devia mais tarde sobrelevar pela coragem e pelo valor todos os famosos corsários da ilha das Tartarugas, com as célebres expedições do Panamá e com a expugnação, que antes se julgara inexequível, daquela cidade, rainha do Oceano Pacífico.
Dotado de robustez excepcional e de força assombrosa, formoso de feições e generoso de carácter, com um olhar agudo que tinha não sei que misterioso dom fascinador, também ele, como o Corsário Negro, sabia impor-se àqueles rudes marinheiros.
Sob as suas ordens, em menos de vinte minutos foram elevadas duas fortes barricadas, a bombordo e a estibordo, uma diante do mastro do traquete, e outra diante do mastro grande, compostas de traves e barricas cheias de ferragens, destinadas a proteger o tombadilho e o castelo de popa, no caso em que os inimigos assaltassem o convés.
Cinquenta granadas de mão foram colocadas por detrás das traves.
Quando tudo ficou pronto, Morgan fez recolher os homens à ré, e pôs-se ele de observação à beira do gurupés, com uma das mãos no punho da espada e a outra na coronha da pistola que trazia na cinta.
O navio adversário não estava então a mais de seiscentos ou setecentos metros. O Relâmpago, justificando plenamente o nome, ganhava caminho, e preparava-se para cair-lhe em cima com um choque tremendo, irresistível.
O navio espanhol podia distinguir-se nos seus mínimos pormenores, conquanto a noite estivesse escura, à falta de luar.
Conforme Wan Stiller o havia suspeitado, era um navio de linha, de aspecto imponente, um verdadeiro navio de guerra, talvez formidavelmente armado e equipado por numerosa e aguerrida tripulação.
Outro que não fosse o Corsário das Tartarugas ter-se-ia abstido de o acometer; mesmo vencendo, bem pouco encontraria que saquear, visto que aqueles intrépidos piratas tinham sobretudo a peito atacar os navios mercantes ou os galeões carregados de tesouros provenientes das minas do México, do Iucatão e da Venezuela. Mas não pensava de semelhante modo o Corsário Negro, homem que não se importava com riquezas.
Via talvez naquele navio um poderoso aliado de Wan Guld, que mais tarde poderia embaraçar os seus intentos, e preparava-se para o acometer antes que fosse reforçar a esquadra do almirante Toledo, ou defender Maracaibo.
A quinhentos metros, o navio espanhol, vendo-se obstinadamente perseguido, e não duvidando já dos sinistros propósitos do navio corsário, disparou segundo tiro de canhão.
Desta feita a bala não se perdeu no mar. Passou entre as velas do joanete e da gávea e foi cortar a extremidade do mastro de mezena, fazendo cair a bandeira negra dos corsários.
Os dois contramestres da artilharia do tombadilho voltaram-se para o Corsário Negro, que permanecia ao leme, empunhando o porta-voz, e perguntaram:
- Começamos, comandante?
- Ainda não - respondeu o Corsário Negro.
Terceiro tiro de canhão ecoou no mar, mais forte que os outros dois, e uma terceira bala sibilou entre os aparelhos do navio corsário, arrombando a amurada da popa, a três passos apenas do leme.
Outro sorriso sardónico aflorou aos lábios do audaz corsário, mas nenhuma ordem saiu da sua boca.
O Relâmpago precipitava a carreira, mostrando ao navio inimigo o seu alto esporão, o qual fendia o mar com um sussurro cavo, impaciente por penetrar, com um rasgão tremendo, no bojo do navio espanhol.
Subitamente um clamor enorme reboou nas trevas.
Ouviram-se brados de terror e ordens precipitadas no navio inimigo.
Uma voz imperiosa dominou por um momento o tumulto, talvez a do comandante.
- Vira a bombordo... Apoia todo o leme!...
- Descarga geral!. . .
Fragoroso estampido rebentou a bordo do navio de linha, enquanto enormes clarões iluminaram a noite. As sete peças de estibordo e os dois canhões de corso do convés vomitaram os seus projécteis sobre o navio corsário.
Sibilam as balas por entre os homens, atravessam as velas, cortam cabos, cravam-se na querena ou arrombam as amuradas, mas não sustêm o avanço do Relâmpago.
Governado pelo braço robusto do Corsário Negro, cai com todo o impeto sobre o grande navio. Felizmente para este, uma rápida metida de leme, pelo piloto, salva-o de uma pavorosa catástrofe.
Desviado repentinamente da sua linha, vira a bombordo, fugindo por milagre à esporoada que devia metê-lo no fundo com o flanco aberto:
O Relâmpago passa então onde, um momento antes, estava a popa do navio adversário. Toca-lhe no flanco, abalroando com um estampido seco que se repercute nas profundidades do porão, despedaça a verga da mezena e parte da coroa - mas nada mais.
O navio corsário, tendo falhado o golpe, prossegue a sua carreira veloz e some-se nas trevas sem ter dado indício de ser tripulado por numerosa marinhagem e de estar formidavelmente armado.
- Raios de Hamburgo!... - exclamou Wan Stiller, que tinha reprimidoa respiração, contando com um tremendo choque. - Ora podem gabar-se os espanhóis de ter escapado de boa. É o que se pode dizer estar em sorte.
- Não dava uma cachimbada pelos homens que tripulam o navio respondeu Carmaux. - Já me parecia vê-los mergulhar nos abismos do grande golfo.
- Achas que o comandante tentará outra vez o ataque?
- Os espanhóis hão-de pôr-se agora em guarda e apresentar-se-ãode proa.
- E bombardeiam-nos lentamente. Se fosse de dia, aquela descargapodia ter-nos sido fatal.
- Enquanto que assim, só nos causaram estragos insignificantes.
- Caluda, Carmaux!...
- Que há?.. .
O Corsário Negro tinha levado à boca o porta-voz e bradara:
- Prestes a virar de bordo!
- Voltamos à carga? - perguntou a si mesmo Wan Stiller.
- Por Baco!... Não deixa certamente safar-se o navio espanhol observou Carmaux.
- Parece-me que o navio não está com tenções de se safar.
Era exacto. O navio espanhol, em vez de prosseguir na carreira, tinha parado, atravessando-se, como se tivesse decidido aceitar batalha.
Mas virava vagarosamente de bordo, apresentando o esporão para evitar a investida.
Também o Relâmpago tinha virado de bordo a duas milhas de distância; mas, em vez de atacar de novo o adversário, descrevia em volta dele um grande círculo, mantendo-se em todo o caso fora do alcance da artilharia.
- Já percebo - disse Carmaux. - O nosso comandante quer aguardara madrugada antes de travar a luta e arrojar-se à abordagem.
- E impedir os espanhóis de continuarem o seu rumo para Maracaibo - acrescentou Wan Stiller.
- É isso, exactamente. Meu amigo, preparemo-nos para um combate desesperado, e como é costume entre corsários, se eu tiver de ser cortado em dois por alguma bala de canhão ou morto no convés do navio inimigo, nomeio-te herdeiro da minha modesta fortuna.
- Que monta a...? - perguntou Wan Stiller, rindo.
- A duas esmeraldas, que valem pelo menos quinhentas piastras cada uma, e que trago cosidas no forro do meu jaleco.
- Chega para me divertir uma semana nas Tartarugas. Eu nomeio-temeu herdeiro, mas previno-te de que apenas possuo dois dobrões, cosidos na minha cinta.
- Chegam para beber duas garrafas de vinho de Espanha à tua memória, amigo.
- Obrigado, Carmaux; fico sossegado e posso esperar a morte comtoda a serenidade.
Toda a noite o navio corsário continuou a girar em volta do navio espanhol, sem responder aos tiros de canhão que de quando em quando este disparava, mas sem nenhum resultado. Porém, quando as estrelas começaram a desmaiar e os primeiros alvores da madrugada tingiram as águas do golfo, a voz do Corsário Negro tornou a fazer-se ouvir:
- Homens do mar! - bradou. - Cada qual ao seu posto de combate.... Iça a minha bandeira!...
Três formidáveis hurras ecoaram a bordo do navio corsário, seguidos do troar dos dois canhões de corso.
O navio de linha largara pano novamente, e marchava de encontro ao navio corsário. Devia ser tripulado por homens valorosos e resolutos, porque geralmente as naus espanholas procuravam fugir aos ataques dos corsários das Tartarugas, sabendo por experiência própria a casta de adversários com que tinham de haver-se.
A uns mil metros recomeçou o canhoneio com grande fúria. Dando bordos, ora descarregava as peças de estibordo ora as de bombordo, cobrindo-se de fumo e chamas.
Era um grande navio de três pontes, com mastreação de nau, de bordo muito alto, e munido de catorze bocas de fogo, uma verdadeira nau de guerra, talvez pedida por alguma necessidade urgente pela esquadra do almirante Toledo.
No castelo da proa via-se o comandante, de grande uniforme, espada em punho, cercado pelos seus oficiais, enquanto na coberta se distinguia avultado número de marinheiros.
Com o pavilhão da Espanha içado no mastro grande, aquele poderoso navio dirigia-se para o Relâmpago, troando terrivelmente.
O navio corsário, conquanto mais pequeno, não se deixava atemorizar por aquela chuva de balas. Apressava a marcha, respondendo com os seus canhões de corso, e aguardando talvez o momento oportuno para descarregar as doze peças das portinholas.
A quatrocentos metros os fuzileiros vieram auxiliar os dois canhões da popa, metralhando a tolda do navio inimigo.
Aquele fogo devia em breve tornar-se desastrosissimo para os espanhóis, porque, como dissemos, os corsários quase nunca erravam os tiros, tendo sido antes bucaneiros, ou seja, caçadores de bois bravos.
As balas daqueles grossos arcabuzes faziam realmente bem maiores estragos que o fogo dos canhões. Os homens da nau caiam às dúzias ao longo das amuradas e caiam também os artilheiros das peças de popa e os oficiais do tombadilho.
Dez minutos bastaram para que não ficasse viva nem uma pessoa sequer. Até o comandante caira no meio dos seus oficiais, antes ainda que os dois navios se abordassem.
Restavam, porém, os homens das baterias, bem mais numerosos do que os da tolda. A vitória, era, pois, ainda disputável.
A vinte metros um do outro, os dois navios viraram de bordo bruscamente. Neste momento, a voz do Corsário Negro trovejou, dominando o troar da artilharia.
- Ferra a mestra e a gávea, iça o traquete, caça a mezena...
O Relâmpago deslocou-se velozmente sob uma forte metida de leme e foi envolver o seu gurupés entre as enxárcias da mezena do navio espanhol.
O Corsário Negro saltara do castelo de popa, de espada na mão direita e pistola na esquerda.
- Homens do mar! à abordagem!

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