Maracaíbo, tendo uma população que não chegava a dez mil almas, era naquela época uma das cidades mais importantes que a Espanha possuia na costa do golfo do México.
Os espanhóis defenderam-na com um forte poderoso, armado de grande número de canhões, e sobre duas ilhas, que a protegiam da banda do golfo, colocaram guarnições formidáveis, temendo qualquer súbito ataque dos temiveis corsários que se haviam instalado na ilha das Tartarugas.
Os primeiros aventureiros que puseram o pé nestas paragens construiram lindas casas; abundavam os lugares públicos de reunião, onde se juntavam os ricos proprietários de minas e onde se dançava o fandango e o bolero.
Quando o Corsário e os seus companheiros, Carmaux e o negro, entraram em Maracaibo, as ruas estavam ainda frequentadas, e as tabernas, onde se vendiam vinhos da Europa, regurgitavam de clientes, porque os espanhóis, mesmo na sua colónia, não tinham renunciado ao prazer de saborear um bom copo de Málaga.
O Corsário Negro havia afrouxado o passo. Com o chapéu caido sobre os olhos, envolto na sua capa, apesar da noite quente, a mão esquerda apoiada nos copos da espada, observava as ruas e as casas, como se quisesse imprimi-las na mente.
Junto à Praça de Granada, o centro da cidade, encostou-se à esquina de uma casa, como se uma súbita fraqueza o houvesse acometido.
A praça oferecia um espectáculo lúgubre, que faria estremecer o homem mais impassivel do Mundo.
De quinze forcas, alçadas em semicírculo ante o palácio, onde tremulava a bandeira espanhola, baloiçavam quinze cadáveres humanos.
Estavam todos descalços e com os fatos esfrangalhados, excepto um que vestia um trajo cor de fogo e calçava botas altas.
Sobre aquelas quinze forcas adejavam numerosos bandos de zopilotes e de urubus, aves de penas negras, que se encarregam da limpeza das cidades da América Central, e as quais parecia que só esperavam a putrefacção daqueles desgraçados para se lançarem sobre as suas pobres carnes.
Carmaux aproximou-se do Corsário Negro, dizendo-lhe com voz comovida:
- Eis os nossos companheiros!
- Sim - respondeu o Corsário, com voz sufocada. - Reclamam vingança e tê-la-ão em breve.
Desviou-se da parede, fazendo esforço violento, inclinou a cabeça sobre o peito, como se quisesse ocultar a terrivel emoção que lhe havia alterado as feições, e afastou-se a passo rápido, entrando numa pousada, para beberem à
vontade alguns canjirões de vinho.
Encontrando uma mesa devoluta, sentou-se, ou, melhor, deixou-se cair num banco, sem erguer a cabeça, enquanto Carmaux bradava:
- Um canjirão do melhor xerez, taberneiro de uma figa!... Cuidadoque seja autêntico ou não respondo pelas tuas orelhas!... O ar do golfo fezme tanta sede que sou capaz de tragar todo o vinho da tua taberna!...
Aquelas palavras, proferidas em puro biscainho, fizeram acorrer o dono da pousada com uma garrafa daquele excelente vinho.
Carmaux esvaziou três copos, mas o Corsário Negro estava tão absorto nos seus tétricos pensamentos que não pensou em tocar no seu.
- Com mil tubarões!... O patrão está em plena tempestade, não queria ver-me na pele dos espanhóis. Foi na verdade grande audácia vir aqui, mas ele não é homem para medos.
Olhou em redor da taberna, com alguma curiosidade não isenta de vago temor, e avistou cinco ou seis indivíduos armados de navalhas enormes, os quais o observavam com particular atenção.
- Parece que nos observam - disse o negro. - Quem são aqueles homens?
- Vascongados, ao serviço do governador - respondeu Carmaux. Compatriotas militando sob outra bandeira.
- Julgam que me atemorizam com as navalhas; enganam-se.
Aqueles indivíduos, no entanto, haviam atirado fora os cigarros que estavam fumando; e, depois de terem molhado a boca com alguns copos de Málaga, puseram-se a conversar em voz tão alta que eram ouvidos por Carmaux.
- Já viram os enforcados? - perguntou um deles.
- Fomos vê-los ainda esta tarde - respondeu outro. - Que belo espectáculo oferecem aqueles canalhas!... Há então um que nos faz rebentar de riso, com a lingua saindo-lhe da boca meio palmo.
- O Corsário Vermelho? - perguntou um terceiro. - Muito avisadamente lhe puseram um cigarro na boca, para o tornar mais caricato.
- E eu quero meter-lhe na mão um guarda-sol, para que amanhã seabrigue dos raios ardentes. Deve ser divertido, vereis.
Um murro formidável dado na mesa, e que fez saltar os copos, interrompeu aquela conversa.
Carmaux, sem poder conter-se, e antes mesmo que o Corsário Negro pensasse em reprimi-lo, ergueu-se da cadeira e pregou na mesa vizinha aquele formidável murro.
- Ravos de Dios! - disse com voz de trovão. - Grande valentia é, naverdade, escarnecer dos mortos. Valentia é sim, escarnecer dos vivos, meus caros cavalheiros...
Os cinco beberrões, estupefactos com aquela súbita explosão de cólera do desconhecido, levantaram-se rapidamente, empunhando na mão direita a navalha; depois, um deles, por certo o mais atrevido, perguntou-lhe com semblante carregado:
- Quem sois vós, cavalheiro?
- Um biscainho que respeita os mortos, mas sabe abrir o ventre aos vivos.
Os cinco beberrões, ao ouvirem aquela resposta, que se podia tomar por uma fanfarronada, puseram-se a rir, o que enfureceu ainda mais Carmaux.
- Ah!.. , ele é isso? - disse este, pálido de ira.
Olhou para o Corsário, que se não havia movido, como se aquela altercação não Lhe dissesse respeito; depois, estendendo a mão para o que o havia interrogado, repeliu-o furiosamente, bradando-lhe:
- O lobo do mar comerá o lobozinho da terra!
O homem repelido caiu sobre uma mesa, mas ergueu-se prontamente, tirando da cinta uma navalha que abriu com um estalido seco.
Ia certamente lançar-se sobre Carmaux para o atravessar de lado a lado com a arma, quando o negro, que até esse momento se havia conservado simples espectador, a um sinal do Corsário Negro se colocou entre os dois contendores, brandindo uma pesada cadeira de pau-ferro.
- Alto ou mato-te!... - gritou para o homem armado.
Vendo aquele gigante de pele negra, cuja poderosa musculatura parecia estalar nesse corpo atlético, os cinco vascongados retrocederam, para não serem esmagados pela cadeira que descrevia no ar curvas ameaçadoras.
Quinze ou vinte beberrões, que se encontravam numa habitação contigua, ao ouvirem aquele barulho, apressaram-se a acudir. Vinham precedidos de um homenzarrão, verdadeiro tipo de valentão, armado de grande espada, com um amplo chapéu emplumado e caido sobre a orelha, e o peito coberto com uma couraça de pele de Córdova.
- Que se passa aqui? - perguntou rudemente aquele homem, desembainhando o espadagão com modos trágicos.
- Nada tendes com o que aqui se passa, meu caro cavalheiro respondeu Carmaux, inclinando-se burlescamente.
- Por todos os santos!... - exclamou o valentão com modos arrogantes. - Bem se vê que não conheceis Dom Gamara y Miranda, conde de Badajoz, nobre de Camarga e visconde de...
- Da casa do diabo - interrompeu o Corsário Negro, erguendo-se bruscamente e olhando fixo para o valentão. - E dai, Don Caballero, conde, marquês, duque, etc.?. .
O senhor de Camarga e de outros lugares tornou-se vermelho como uma donzela, depois empalideceu, dizendo com voz cavernosa:
- Por todas as forças do inferno!... Não sei quem me possa conterque os não mande para o outro mundo a fazer companhia ao perro do Corsário Vermelho, que está fazendo bonita figura na Praça de Granada, e aos seus catorze birbantes!
Desta feita foi o Corsário Negro quem empalideceu horrivelmente. Com um aceno deteve Carmaux, que ia para precipitar-se sobre o aventureiro; desembaraçou-se da capa e do chapéu, e com rápido movimento desembainhou a espada, dizendo com voz fremente de cólera:
- Perro és tu, que vais fazer companhia aos enforcados, e a tua alma irá para os infernos.
Fez sinal aos espectadores para se colocarem ao largo e defrontouse com o adversário, pondo-se em guarda com uma elegância e firmeza destinadas a desconcertar o antagonista.
- A nós, conde da casa do diabo!... - disse com os dentes cerrados.- Dentro em pouco estarás morto!
O aventureiro pôs-se em guarda, mas subitamente endireitou-se, dizendo:
- Um momento, cavalheiro. Quando se cruzam os ferros há direitode saber o nome do adversário.
- Sou mais nobre do que tu; não te basta?
- Não; o nome é que desejo saber.
- Desejas?... Pois seja, mas pior para ti, porque não o dirás a ninguém. - Aproximou-se dele e murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido.
O aventureiro soltou um grito de assombro e talvez de terror, e deu dois passos atrás, como se quisesse meter-se entre os espectadores para trair o segredo, mas o Corsário Negro atacou-o vivamente, obrigando-o a defender-se.
Os beberrões formaram amplo circulo em volta dos duelistas. O negro e Carmaux estavam na primeira fila, nada preocupados com o êxito do encontro, particularmente o último, que sabia de quanto era capaz o seu capitão.
O aventureiro, logo aos primeiros passos, havia percebido que tinha diante de si um adversário temivel, disposto a matá-lo ao primeiro bote falso, e apelava para todos os recursos da esgrima, a fim de parar os botes que caiam como uma chuva de saraiva.
Aquele homem não era, no entanto, um espadachim para desdenhar. Alto, robustíssimo, com pulso firme e braço vigoroso, devia opor longa resistência e reconhecia-se que não era fácil cansá-lo.
O Corsário Negro, ligeiro, ágil, de mão pronta, não lhe dava um instante de tréguas, temendo que ele se aproveitasse do menor descanso para trai-lo. A sua espada ameaçava-o sempre, constrangendo-o a sucessivas paradas.
A ponta cintilante relampejava, batia forte no ferro do aventureiro, fazendo-o faiscar; e partia a fundo com uma velocidade quase fulminante, que desconcertava o adversário.
Dois minutos depois, o aventureiro, não obstante o seu vigor, principiava a afrouxar. Via-se embaraçado para responder aos botes do
Corsário Negro, e já não conservava a calma primitiva. Sentia que a pele lhe corria grave perigo e que acabaria realmente por ir fazer pouco alegre companhia aos enforcados da Praça de Granada.
O Corsário Negro, no entanto, estava como no primeiro momento em que desembainhara a espada. Saltava com a agilidade de jaguar, atacando sempre com crescente vigor o aventureiro. Somente os olhos, animados de um brilho sinistro, demonstravam cólera.
Esses olhos não se desviavam um só instante dos do adversário, como se quisessem fasciná-lo e perturbá-lo.
O circulo dos espectadores alargou-se para dar mais campo ao aventureiro, que recuava cada vez mais, aproximando-se da parede oposta.
Num momento, o aventureiro encontrou-se arrimado à parede. Empalideceu horrivelmente e grossas gotas de suor frio cobriram-lhe o rosto.
- Basta! - disse com voz rouca e cansada.
- Não - respondeu o Corsário Negro em tom sinistro. - O meu segredo deve morrer contigo.
O adversário tentou um bote desesperado.
Endireitou-se o mais que pôde e arremessou-se para diante, vibrando três ou quatro estocadas umas após outras.
O Corsário Negro, firme como uma rocha, parou-as com igual presteza.
- Agora prego-te na parede - disse-Lhe.
O aventureiro, louco de terror, e compreendendo que estava perdido, ia a gritar:
- Socorro... É o Cor...
Não acabou; a espada do Corsário Negro havia-lhe penetrado no peito, cravando-o na parede e afogando-lhe a frase.
Uma golfada de sangue jorrou-lhe da boca, manchando-lhe a couraça, que não fora bastante para defendê-lo daquele tremendo golpe.
Abriu horrivelmente os olhos, fixando-os no adversário como o último lamento de terror; em seguida caiu pesadamente sobre o solo, partindo em duas a lâmina que o havia pregado na parede.
- Era uma vez um homem - disse Carmaux em tom de mofa. Curvou-se sobre o cadáver, tirou-lhe da mão a espada, e, oferecendo-a ao capitão, que, de semblante macabro, olhava para o aventureiro, disse-lhe:
- Já que a outra se partiu, tomai esta. É uma verdadeira lâmina deToledo, asseguro-vos, senhor.
O Corsário recebeu a espada do vencido, sem proferir palavra; tomou o chapéu e a capa, lançou sobre a mesa um dobrão de ouro e saiu da pousada seguido de Carmaux e do negro, sem que alguém ousasse detêlo.
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Corsario Negro
Historical FictionFINALIZANDO!!! Até onde você iria por vingança? Quando seu pior inimigo tenta tirar tudo oque você tem? O Corsário negro não conhece limites quando o assunto é sua vingança! Em seu caminho vai encontrar alguma pessoas que ira ajudar em seu propósito...