Primeira Partida

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Há quem diga que nada disso aconteceu de fato, e que tudo não passou de pura alucinação de Quejada. Os maiores e mais entendidos especialistas do assunto concordam em afirmar que o que ocorreu foi simplesmente o seguinte:

De tanta leitura inútil, passando noites de claro em claro, do pouco dormir e do nada se alimentar, por fim acabou que isso lhe secou completamente o cérebro! E influenciado por seus livros ficou tomado de ilusões. Deu-se, portanto, no mais estranho pensamento em que jamais nunca antes caiu louco algum neste mundo: Quis se tornar um antigo cavaleiro medieval e sair pelo mundo procurando aventuras: desfazendo todo o gênero de agravos, pendências e tormentas, inclusive pondo-se em ocasião de muito risco e perigo, o que comprava o seu estado de absoluta maluquice. Ora, esses são especialistas especuladores e neles não se pode confiar. O melhor é contar o restante da história para que cada um tire por si só suas próprias conclusões:

***

Nos dias que se seguiram, após aquela fabulosa visão do cavaleiro Amadis de Gaula, Quejada ainda continuou com suas leituras, porém andava bem mais sossegado e não cometia atos estranhos para não chamar a atenção de ninguém.

Entretanto, por dentro só pensava em coisas próprias de novelas de cavalaria: Feiticeiros e fadas, bruxas e dragões, confrontos e combates, princesas encantadas, reis enfeitiçados, tudo isso lhe povoava a mente. E acima de tudo, havia os cavaleiros andantes, estava cada vez mais fascinado por eles, sobretudo agora que pretendia tornar-se verdadeiramente um herói.

Ele não via o momento de poder armar-se devidamente e partir de uma vez por todas para a aventura. Contudo, sabia que era necessário fazer antes alguns preparativos e partir no tempo certo para nada dar errado e não ter que voltar depois. Por isso, planejou:

Primeiro fez alguns acertos e ajustes na sua armadura para tentar deixá-la novinha em folha. Tirou a ferrugem e até lavou-a com água e sabão, o que a deixou de uma cor azulada. E de fato, conseguiu melhorar bastante seu aspecto, muito embora somente ele não percebesse que continuava cheia de arranhões e amassos!

Depois, conseguiu arranjar, por sorte, uma lança-rombuda, que é arma própria de cavaleiros andantes! - foi difícil encontrar e teve que mandar buscá-la em um bazar de relíquias antigas lá no mercado de Toledo, custou muitíssimo caro por a loja pertencer a um avarento. Também teve que dar um jeito nela, porque a lança não estava totalmente perfeita, ela era meio torta na ponta! Mas isso Quejada consertou - ou pensou que consertou, é melhor dizer!

"Tão importante quando o ataque é a defesa!". – Ele refletiu. Por isso, em seguida, ele próprio construiu para si um escudo redondo de madeira, aproveitando uma mesinha quebrada que havia no porão. E esse escudo ficou muito bonito! Só não se podia garantir se resistiria mesmo a uma pancada bem dada.

- Agora sim estou pronto! – disse ele para si mesmo. - Acho que já posso partir! – falava muito satisfeito esfregando as mãos, muito contente e animado.

***

Acontece que por mais que ele tentasse disfarçar, dava para perceber que estava aprontando alguma. E por isso, sua sobrinha muito esperta, mandou chamar os dois amigos mais íntimos do seu tio, para ver se eles conseguiam arrancar alguma confissão sobre o que afinal ele andava planejando em segredo.

Seus amigos eram: Mestre Nicolau, o Barbeiro-Cirurgião da aldeia próxima - era um homem grandalhão e bigodudo. Apesar de sua aparência rústica e de ser um pouco insensível, era pelo menos divertido. Tinha como principal característica seu excelente bom-humor para tudo – bom-humor principalmente para arrancar o dente de alguém! O outro amigo era o padre Pedro Peres – um religioso que só andava vestido com roupas longas e pretas, bastante estudioso e aplicado, um grande erudito. Era alto e magro, sempre sério e recatado. Tinha comportamento sereno - mantinha-se calmo até para resolver problemas. Além disso, na maioria das vezes ainda sabia dar bons conselhos.

Cavaleiro D'AstúriasOnde histórias criam vida. Descubra agora