Alvoroço na Alvorada

12 0 0
                                    


Já era a hora d'alva, quando uma claridade desponta no horizonte anunciando o amanhecer de mais um novo dia. Quejada, que agora o podemos chamar de Quixote se preferirem, estava tão contente e com tanto alvoroço de ter sido armado cavaleiro andante que queria encontrar logo seu amigo Amadis para poder contar a novidade. Só não sabia onde procurá-lo, já que era sempre ele quem o encontrava, ou aparecia ocasionalmente pelos caminhos.

Recordou-se então de repente dos conselhos do "bondoso rei" que o consagrou, e determinou voltar a sua casa tão somente para se prover de tudo aquilo que havia mencionado, incluindo o tal escudeiro que dissera que faltava. Porém, pouco tinha avançado no caminho de volta, quando ouviu que saiam altas vozes de dentro de um bosque pelo qual passava perto, como se fosse de alguém a sofrer e lastimar dores. Quixote viu nisso grade oportunidade:

- Graças rendo ao céu pelo favor que me faz, pois tão depressa já me põe diante ocasião de eu cumprir o que devo na minha nova profissão. Estas vozes quem as solta, sem dúvida, é algum triste pobre necessitado que está carecendo urgentemente de meu amparo e ajuda! Pois então: Lá vou eu!

Disse e deu então rédeas ao cavalo, e com bom animo e presteza respondeu o novo Rocinante, encaminhando-se para onde vinham os gritos. E logo aos primeiros passos de aproximação, avistaram-se duas pessoas, sendo que uma era um rapazito jovem que estava amarrado a um arvoredo, e era ele mesmo que tão alto gemia, e não sem causa ou razão, porque estava ali também um homem brutalhudo que cruelmente o afligia batendo-lhe com uma correia, e a cada açoite lhe dizia uma rude repreensão:

- Bico fechado!

Chupleft

- Aiii!!!

- Olho vivo!

Splaaf

- Aiii!!!

- Atenção!

- Pare! Pare! Pelo amor que tem a Deus seu Eurico! – suplicou o menino terrivelmente desesperado e aos prantos. – Não tornarei a repetir isso. Prometo!

Vendo tamanha brutalidade Quixote não se omitiu. Veio com tal rapidez e tão cheio de ira que assim que apareceu amedrontou o homem que ficou assustado pelo modo repentino com que surgira do nada dizendo: - Alto lá! Malvado verdugo! Não vai mais praticar covardias! Vem enfrentar-me e terás a justa paga por tua demasia!

- Calma! Que não sou de briga! – alegou o homem prontamente erguendo as mãos, era apenas um fazendeiro, mas ficara tão impressionado de ver alguém de armadura e lhe mirando uma lança bem na cara, que muito mal pode falar. – Este aqui que estou castigando não é ninguém não! É só apenas meu criado Andrés, que fez o que na devia! – balbuciou ele tentando se explicar.

- Ora, vilão ruim! Como encontra coragem de dizer que uma pessoa humana por acaso não é ninguém!? E que permissão tem tu para lho castigar? – Quixote exigiu saber.

- Bem... é que ele me serve de pastor de ovelhas, mas é tão descuidado e distraído que todos os dias me perde alguma! – explicou o fazendeiro. – Pior ainda, é que esse menino não tem vergonha nenhuma e me faz calunias, com a ousadia de espalhar por aí que estou lhe devendo dinheiros sem querer pagá-lo!

- Isso não é motivo nem desculpa! Já tive também um menino criado em casa, quando eu ainda era pessoa comum, ele sempre me aprontava alguma travessura, e nem por isso o castigava com maus-tratos! – argumentou Quixote recordando-se do menino prestativo que residia em sua casa. Ficou furioso: – Arg!!! Veja que já estou no vai-não-vai para lhe atravessar com a ponta dessa lança, canalha! Solte já o rapazote desta árvore e pague logo o quanto lho deve! – ordenou enérgico e muito irado.

O homem por fim baixou a cabeça e desprendeu o garoto ovelheiro da árvore em que fora amarrado. Quando perguntado de quanto era a dívida e dissera que a quantia era: - Mais de um conto! – o homem indignado o interrompeu dizendo que não era tanto assim. - Eu lhe comprei sapatos novos! E quando ficou doente paguei um barbeiro-cirugião para lhe dar sangrias para sarar! – ele alegou, discordando.

- Não importa. Porquanto o couro do sapato fica pelo couro que tirou das suas costas, e se recebeu sangria estando enfermo, com esses açoites, tu deste lhe sangria estando ele são! Portanto nesse particular não há mais que ver: São contas justas! Agora, pague o serviço do pastor! – exigiu outra vez Quixote apontando a lança impaciente, como quem estivesse mesmo em tempo de lhe transpassar com sua ponta.

- Certo! – concordou o fazendeiro. – Mas não tenho aqui dinheiros para desembolsar tal quantia. Se Andrés vir comigo e me acompanhar eu lho pagarei!

- Eu...? Ir com ele! Nem pensar! – exclamou o garoto desconfiado. – Se ficamos a sós novamente ele me esfola vivo de uma vez!

- Tal não fará! – garantiu Quixote. – Não percebe que ele me acatará respeito? Pela ordem de Cavalaria que professo e como Cavaleiro Andante que tão bom eu sou, pode dar já o pagamento por seguro!

- Veja bem, senhor! – advertiu o rapazito aflito. – Este não é cavaleiro algum não, pelo contrário: é Eurico, o Rico! O qual todos chamam de Eurico o Avarento, ou ainda Eurico Ganancioso.

- Moleque, pare já com esse desrespeito comigo! – retrucou o fazendeiro bravo de raiva.

- Pouco importa isso! – desconsiderou Quixote. – Porque muito mal o povo pode falar de qualquer um, até mesmo de um homem bom e bem honesto que seja. Eu mesmo já sofri calunias quando disseram que eu era lunático, estando eu tão lúcido como estou agora.

- Anda amigo! Vem comigo, Andrés! – disse Eurico. – Deixemos disso: Não importa o quando devo que eu to pago com gosto! Vem!

- Isso! Paga e fico contente! – falou Quixote dando rédeas a Rocinante e iniciando a se afastar, dando a questão por resolvida. – No fim, não me parece tão ruim quanto pensei, senhor Eurico! Mas não se esqueça do prometido e jurado! E para ter a satisfação de saber quem o intimida: Sou o valoroso Cavaleiro Quixote da Mancha, um desfazedor de agravos e de causas sem-razão!

- Pode ir tranqüilo, cavaleiro! – disse o fazendeiro acenando um adeus. – Vá-se em paz, senhor Quixote da Mancha!

- Espere, senhor, que eu... – quis dizer o garoto, mas sem tempo, pois o fazendeiro o tapou a boca e prendeu seus braços completamente.

- Fiquem com Deus! E atenção: Olho nas ovelhas. Não vá perder mais nenhuma, bom garoto ovelheiro! – foi dizendo Quixote que já estava de costas e se afastava sem ver ou notar o que por de trás dele acontecia.

O malvado, vendo que o estranho sumia para longe, amarrou novamente o coitado ovelheiro no arvoredo e voltou a castigá-lo do mesmo modo de antes, mas com muito mais raiva e ódio. E o pobre menino tinha agora a boca tão amarrada que nem podia lançar seus gemidos como antes. Eurico era quem muito falava:

- Chamai agora, senhor Andrés, pelo velhote desfazedor de agravos! – zombou o fazendeiro voltando-se a rir, e o menino tornando-se a chorar. – Vê se ele, o maluco, desfaz esse castigo que vou agora dar lhe em triplo, só para compensar a intromissão.

Chupleft


Cavaleiro D'AstúriasOnde histórias criam vida. Descubra agora