Quejada cavalgou sem direção certa por toda aquela manhã, pensando apenas em se afastar o mais possível de seu lugarejo - tanto porque não queria ser reconhecido por ninguém como o homem comum que tinha sido até então, como também para poder começar vida nova, lançando-se e fazendo seu nome em terreno desconhecido.
Só que para sua angustia e total frustração não havia se deparado com pessoa alguma para quem pudesse perguntar aonde poderia encontrar qualquer guerra ou batalha a qual sentia ser necessário logo fazer parte, ou talvez tomar notícia de algum gigante que se escondia e fazia o terror da vizinhança, para poder enfrentá-lo e por fim as suas maldades e injustiças.
Quando o sol já estava alto no céu seu estômago começou a reclamar comida e sua boca estava seca demais, e apesar de Quejada desprezar esses incômodos e necessidades, o seu cavalo que sentia o mesmo não fingia nenhum pouco ignorar seu tormento, e seguia com olhos esbugalhados e suas patas bambeando para lá e para cá, em zigue-zague, tão devagar e penosamente que quem o visse era possível imaginar que estava a ponto de "bater os cascos", ou seja, cair e morrer naquele mesmíssimo instante. (Devemos reconhecer que ele levava um homem de armadura completa, espada de pau, escudo de madeira, e uma lança de quase dois metros. Já era um cavalo idoso e fraquinho demais para essas coisas!).
Nada disso Quejada percebia, e parecia estar ligando pouca importância para o animal, muito embora, por vezes ele se dirigia ao pobre equino falando-lhe afavelmente a orelha palavras de incentivo, como: - Isso, amigo. Vamos com calma! Nada de disparar em galope! Guardemos forças para o que está por vir! Não se afobe por encontrar aventura, meu bom cavalo! – elogiava dando tapinhas no pescoço do animal - que não estava gostando nada dessa conversa.
Não é de se admirar que não notava o quão penalizado seguia o cavalo, já que para falar a verdade por mais de uma vez caiu no sono sentado na cela, devido ao leve sacolejar que parecia o suave ninar de um berço. E foi no despertar sobressaltado de um desses cochilos que ele avistou no alto de um pequeno morro um brilho que cintilou como algo refletindo a luz do sol. Logo, tomou o brilho como um sinal e sem demora foi nessa direção.
Ao se aproximar distinguiu que lá estava um austero cavaleiro sobre seu altivo cavalo - e não é preciso ser muito esperto para adivinhar que não era um cavaleiro qualquer - pois estava totalmente coberto por uma armadura prateada e o rosto completamente coberto pelo elmo, das costas pendia a capa negra, e até mesmo o cavalo grande e forte estava recoberta por placas metálicas sobrepostas, e tudo isso era o que estava refletindo a ofuscante luz solar, inclusive fazendo ser difícil até mesmo enxergar aquela tão imponente figura.
Quejada saltou do cavalo e foi subindo o pequeno morro com uma mão puxando o cavalo cansado pela rédea, e com a outra procurava proteger as vistas, mas de qualquer maneira já havia reconhecido quem era aquele, por isso assim que chegou junto ao cavaleiro levou um dos joelhos ao chão, dizendo: - Olá grande Amadis, que bom reencontrá-lo! Já deve estar sabendo que fiz tudo conforme indicou, disse adeus a minha casa e abandonei a velha vida, estou pronto para ingressar na antiga ordem da cavalaria andante! E levar o valor do meu forte braço a quem necessitar!
- Muito bem! Mas este é apenas o primeiro passo da jornada! – retumbou a voz reverberante do cavaleiro Amadis. – Agora, antes de qualquer outra coisa, se pretende ir adiante deve consagrar-se um cavaleiro. E para isso precisa encontrar alguém que proclame isso oficialmente!
- Grande Amadis, não pode deitar sua espada em meus ombros e consagrar-me cavaleiro cá aqui já agora mesmo!?
- Ah! Evidente que não! – respondeu reverberosamente Amadis. – As leis da cavalaria são claras: exigem que o cavaleiro seja ordenado somente por alguma pessoa real e viva!
- Então... que devo fazer?
- Já está no caminho, pois continua por ele até encontrar um castelo adiante, lá encontrará pessoa nobre que irá iniciá-lo na cavalaria!
- Obrigado! Vou agora mesmo a este castelo, sem mais demoras e sem mais tardanças, pois pressinto que o mundo clama urgentemente para que me torne herói quanto antes! – disse Quejada entusiasmadíssimo, saltando para cima do lombo do rocim de patas bambas, o coitado cambaleou para um lado e quase foi ao chão, mas conseguiu se aguentar de pé, apenas dando um relincho em protesto - mas foi tão fraco e melancólico, que foi de dar pena!
- Espere! – ordenou Amadis. – Por acaso, já tem uma princesa ou dama a qual carregar no coração?
- Sim, eu tenho! – respondeu Quejada feliz com ares de apaixonado e soltando exagerados suspiros. – Ela é a mui bela e grã princesa, a doce Dulcinéia Princesa de Toboso!
- Eu lamento! – disse Amadis. – Tenho pena pela decisão que terá que tomar: Por que caso queira se tornar mesmo cavaleiro andante, lamento dizer: mas não devera jamais chegar diante de tua amada outra vez! Poderá dedicar-se a ela, naturalmente, mas não poderá ir vê-la, ou correrá o risco de teus inimigos fazerem algum mal a esta moça somente para te atingir!
- Essa não! – exclamou Quejada abalado com a noticia.
- Reflita bem! – advertiu Amadis. – Não quer ser herói? Pois devo avisá-lo que ser herói é antes de tudo sacrificar a si próprio para o bem alheio! Por ventura, se ainda pretende ser cavaleiro afasta-te de tua princesa. Lembra-te: Ela é ao mesmo tempo a tua maior força e também teu maior ponto fraco!
- Céus! Que dura pena é esta pela qual passam os heróis! Não há castigo maior do que não poder ver a quem se ama! Um cavaleiro separado de sua amada é como um anjo separado de suas asas!
- Sim, mas não eternamente! – consolou Amadis. – Só enquanto estiver combatendo o mal do mundo! Depois, no fim, poderá revê-la livremente e até juntar-se parar viverem felizes para sempre! Não se esqueça: Há dores, mas também há glórias! Por isso, Quixote, é bom ter pressa, pois quanto antes resolver partir para sua missão, mais breve retornará para os braços de tua Dulcinéia de Toboso!
- Sim! Assim está certo. Vou tornar-me um cavaleiro! – afirmou Quejada resoluto. – Só quero dizer que meu nome não é...
Nisso, enquanto tentava fazer essa observação, de repente, o cavalo de Amadis empinou as patas dianteiras e soltou um vigoroso relincho de ensurdecer, a luz do sol fulgurou refletida na armadura, tão forte que o clarão cegou Quejada por uns instantes, depois o cavaleiro desapareceu sem deixar sequer as marcas de pegadas do cavalo no chão, nem qualquer outro tipo de rastro, se foi como se fosse feito de vapor.
- Ó, ó, ó! Mil vezes ó! Minha dulcíssima princesa Dulcinéia! – clamou Quejada voltando-se para a amplitude do céu. – Impiedoso destino é este que nos separa! Mas prometo-te que anunciarei tua beleza e formosura por onde quer que eu vá, e tudo de bom e valioso que fizer, farei em teu nome! Assim, tua tristeza e minha angustia não serão em vão!
Feita todas estas considerações, deu rédeas e bateu calcanhares no cavalo, para que se apressasse. Em reação o animal lançou um olhar para trás virando a cabeça, muito inconformado, expressando a maior revolta e indignação que um bicho pode sentir contra seu dono.
- Não olhe assim! – falou Quejada sorrindo bondosamente. – Não é preciso ter inveja! Assim que eu puder, farei para você uns revestimentos de aço, tão bons quanto os do cavalo de Amadis!
***
Bastante tempo depois, outra vez sem topar com pessoa alguma, já no fim da tarde, apareceu no horizonte uma estalagem - dessas muito comuns que alojam viajantes. Acontece, porém que Quejada não teve a menor dúvida de que aquilo não era outra coisa senão um castelo de quatro torres muito altas, ponte levadiça estendida sobre um fosso, estandarte tremulando no topo - e ele conseguia imaginar tudo completo, por isso acreditou que só podia ser o local que Amadis mencionara. Rumou para lá agradecido, e o cavalo também estava intimamente grato ao perceber que finalmente chegariam ao fim daquele desagradável passeio sem rumo, assim que chegassem naquele casarão que via lá na frente, ao fundo.
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Cavaleiro D'Astúrias
FanfictionUma releitura e reinvenção de um clássico. Uma livre adaptação do romance Dom Quixote de La Mancha. Modificada de modo a tentar manter a essência, e ao mesmo tempo criar um novo clima pra a história. Tentando torná-la boa para quem já leu e ainda m...