De Volta Outra Vez

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No interior da casa estava havendo uma séria reunião entre a sobrinha Angélica, a governanta Matilda, e os dois amigos de Quejada, o Padre, e o Barbeiro Nicolau. Pois estavam todos preocupados com sua fuga e desaparecimento. E quem falava naquele instante era a governanta, aflita, e pondo todos em reboliço: - Por Deus do céu! É melhor espalharmos logo a notícia e fazer sair o povo todo a sua procura!

- Ainda não! Acredito que é melhor esperar que volte por sua conta própria! - insistiu o Padre com cautela. – Vamos preservar a sua reputação! Não é bom que saibam que ele fugiu de casa...

- Gostaria muito de saber que reputação pretende preservar? – indagou o Barbeiro com sinceridade. – Quem daqui já não sabe ou ouviu falar que Quejada não andava bem dos miolos!

- Ah, desgraçada de mim! – gritava Matilda fazendo escândalo e puxando os cabelos em desespero. – Estou certa, tão certa como nasci pra morrer, de que foram os tais livros que o reviraram o juízo! Que satanás carregue essa livraria danada, porque assim ninguém mais vai ler tão continuado e tão sem descanso a tal ponto de fazer mal!

- Ele já não andava mesmo certo! – falou Angélica. - Ao contrário do que é normal quanto estava lendo não parava quieto, não sossegava: Declamava, gesticulava, de repente sacava uma ripa de pau que era sua réplica de espada e fingia lutar contra invisíveis, dando cutiladas nas paredes ou espetando o ar com estocadas! Depois do combate com sua imaginação própria dizia ter matado vários gigantes! Suas roupas molhadas de suor, ele falava estarem empapadas de sangue! Só voltava a si depois que Matilda lhe jogasse um bom balde de água fria! E mesmo assim até isso ele confundia com um banho encantado, benção que lhe havia mandado um tal sábio Esquife, grande mago seu amigo! – explicou a sobrinha triste e deprimida.

- Quem poderia imaginar!? – consolou o Padre. – Isso tudo podia ter sido só diversão dele! Eu mesmo não vi nenhum mal! Afinal: Velut senectus pueritia est1!

- De qualquer forma: quem tem culpa sou eu! – declarou Angélica lacrimosa assoando-se num lencinho. – Que não percebi a gravidade do problema!

- Não! Culpa dos livros! – retrucou Matilda raivosa. – Eles o deixaram doido! Por isso que eu acho que devíamos...

- Alto lá! Não fazei tanta fofoca de mim nas minhas costas, mera megera! – gritou de repente Quejada. - Abram espaço: que venho ferido em combate!!! - Nesse momento, com essas palavras, Quejada entrou na sala, se apoiando em seu vizinho.

Alegres e surpresos, vendo que felizmente ele havia retornado, cada um da sala saltou e correu a porta querendo envolvê-lo num forte abraço. Porém ele impediu, gritando:

- Parem já! Detenham-se afastados, seus insensíveis! Por que querem me esmagar? – disse ele dolorido. – Não já falei que estou malferido! Chamem urgente o sábio Esquife para tratar de mim! E não se esqueçam de mandar um mensageiro veloz até Toboso avisar a Dulcinéia que seu bravo cavaleiro Quixote da Mancha se encontra em estado grave, ferido de morte!

- Nós cá o curaremos! – garantiu a governanta fazendo sinal da cruz e dando graças por não ter acontecido nada de pior. – Deixe de exageros, patrão. Eu te trato!

- Tu não!!! – recusou Quejada relutante e fazendo careta desesperada. – Se é assim, por favor, me levem de volta para o chão largado onde eu estava! – disse ele recuando, fazendo menção de querer mesmo voltar para trás.

- Quieto! – exigiu o Padre. – Chega de travessuras. Ainda bem que: Vas malum non frangitur2! Ou já estaria morto. Agora levem-no já lá para cima!

Então ele foi levado para o quarto com muito jeito e cuidado, dando-lhe o máximo de carinho e atenção, e lhe fizeram mil perguntas à cerca de onde estivera e o que andara fazendo, ao que só respondia: - Quero cama e comida! - e acrescentando que o resto sozinho se resolveria, pois o pior já passou. Por isso deixaram-no repousar em paz com sossego. Mas, voltando para sala, inquiriram o vizinho para saber onde o havia encontrado nesse estado fragilizado, ao que o homem respondeu contando-lhes tudo, inclusive não deixando de comentar dos delírios em que falava sobre cavaleiros de livros como se fossem pessoas da vida real.

- Estão vendo!? É bem como eu disse: Os livros que viraram o seu juízo pelo avesso! Pobre do meu patrão!

- Matilda, eu devo reconhecer que tem razão! – disse o Padre. – Causa debet praecedere effectum3! Vamos por fim nos livros que atacaram a cabeça do nosso amigo.

- Concordo. – disse Nicolau. – Mas que há de se fazer?

- Que sejam postos fora! – sugeriu a sobrinha determinada.

- Que sejam condenados ao fogo! – suplicou Matilda.

- Juro pelo sinal da santa cruz que darei um jeito neles imediatamente! – prometeu o Padre muito exaltado. – Vamos por fim a isso tudo!

Vernáculos do Padre-Cura:

1 - Velut senectus pueritia est; Ou: Velhice é uma segunda meninice!

2 - Vas malum non frangitur; Ou: Vasilha ruim não se quebra!

3 - Causa debet praecedere effectum; Ou: Não há efeito sem causa!

Cavaleiro D'AstúriasOnde histórias criam vida. Descubra agora