- "Perdi as contas de quantas vezes tivemos essa conversa..." - Alguém disse vindo de trás de Um.
- "Isso porque você não desiste nunca de voltar" - Respondeu a criança, sentada ao chão, tampando o rosto com ambas as mãos enquanto segurava as lágrimas naquela escuridão profunda.
- "Voltar? De onde exatamente pensa que volto? Pra onde pensa que vou quando não estamos conversando? Eu... Estou... Sempre... Aqui" - Disse aquele homem magro, pausadamente, com sua voz perturbadoramente baixa, enquanto andava ao redor do menino - "Somos a mesma pessoa. Estou na sua cabeça a cada escolha estúpida, cada tentativa de ser um herói. Você não é um... e irá morrer se acreditar demais nisso. Todos iremos. Eu deveria tomar esse corpo!"
- "Pare de assustá-lo." - Uma terceira voz se impõe, dessa vez, um homem mais velho e mais sábio - "Em milênios não temos a chance de conversar dessa forma com outro escolhido. Sabe o que pode acontecer se dermos os estímulos errados a ele."
- "Nada pode acontecer. Nasci de um casal normal, em uma família normal, sou uma criança normal. Não sei o que querem de mim, mas sei que não posso fazer."
- "Quero que você destrua o planeta Terra."
- "Queremos que você o salve!"
- "Como sempre, eu não entendo! O que lhes fazem pensar que tenho o poder de escolher? Por que eu nunca sei qual de vocês quer que eu salve a Terra e qual quer que eu destrua? Quem são vocês? O que têm a ver comigo?"
- "Nós somos eu" - Disseram milhares de vozes em uníssono - "Eu sou você".
- "Então... Quem... O que sou eu?" - Gritou assustado, dessa vez, não conteve suas lágrimas.
- "Você se perguntou isso milhares de vezes" - Milhares de vozes responderam. A escuridão que antes tomava conta de todo o lugar foi coberta por nuvens avermelhadas que emanavam uma forte luz - "Você obteve milhares de respostas, as aceitou e depois morreu! Você nasceu novamente e mais uma vez questionou sua própria existência! Eu sou o que você é. Você é o que você é, sua existência é nossa existência. Não temos tempo para questionamentos infantis, escolha a vida ou a morte e escolha logo, ou teremos que força-lo a fazer essa escolha!"
Rapidamente, as nuvens começaram a entrar no corpo de Um, que começou a recobrar sua consciência. Ao abrir os olhos, estava em seu quarto, coberto por labaredas e fumaça. Ouviu o barulho de chutes em sua porta e em pouco tempo, ela veio ao chão. Um bombeiro entrou e puxou seus braços para que se levantasse.
- "Você está bem?" - Perguntou. Em seu peito, trazia o nome "Agnis" estampado.
Com apenas um aceno de cabeça, Um se levantou e seguiu para fora de seu quarto com a mulher.
- "Feche os seus olhos, você não quer ver isso... Essa não... Eu vou te levar até lá fora"
Agnis pegou Um em seus braços, que não obedeceu à ordem da bombeira e olhou ao redor. À sua frente e próximo às escadas, viu seu pai, suas pernas haviam sido esmagadas por uma viga que se desprendeu do teto, e em seus olhos, não se via mais qualquer brilho. Estava morto.
Um se lembrou de toda a rotina de seus familiares, onde cada um deles estaria naquele momento. O pai, como em todos os dias, estava indo chamá-lo para o jantar, por isso estava subindo as escadas. Sendo assim, sua mãe estaria no quarto ao lado, amamentando Mary, sua irmã mais nova, antes de descer. Sabendo disso, não pôde se conter e esperar chegar ao lado de fora nos braços da bombeira. Pulou do colo de Agnis e seguiu em direção do quarto ao lado.
Os bombeiros já haviam chegado. Assim como seu pai, sua mãe estava debaixo de escombros ardendo em brasas, mas sua cabeça ainda estava erguida e, com seus olhos iluminados com o fogo que consumia sua vida em todas as formas, fitou os olhos de Um, parecendo chama-lo para perto. A criança correu até sua mãe, desviando dos braços dos bombeiros que tentavam impedi-lo.
- "Essa área está comprometida, tirem-no de lá agora!" - Gritavam em desespero ao vê-lo se aproximar do local enfraquecido pelo incêndio.
Ao entrarem em ação, os bombeiros começaram uma tentativa de puxá-lo de volta. Todo o alvoroço parou, com um simples gesto de Um: estendeu seu braço esquerdo, usando sua mão para indicar que parassem. Nesse momento, até mesmo o fogo parou de consumir o local, a fumaça já não deixava mais aquele quarto. Os bombeiros, já não mais se mexiam. O tempo parou, a não ser para aquela mãe e seus dois filhos.
Um começou a puxar os escombros, escavando um caminho até os braços fortes porém esgotados, que serviram de escudo para a outra criança, manchada pelo sangue que jorrava do peito ao qual estava prensada.
- "Pegue-a" - Disse ela, estendendo os braços e entregando Mary - "Só você pode cuidar dela agora." - Um segurou sua irmã em seu colo. Essa, agarrou seu dedão com a pequena mão direita. - "Todos vivem dessa forma, não é? Se prendendo a uma esperança. Bem, eu vejo o porquê, quando precisei, a verdadeira esperança apareceu. Três, não, quatro vezes. Primeiro, seu pai, fez minha vida fazer sentido com seu amor, depois, você nasceu e iluminou ainda mais nossas vidas. Finalmente, sua irmã apareceu para completar aquilo que já parecia completo. Nossa família era perfeita. Agora, que tudo parecia ruir, você voltou. Você voltou por mim e por ela. Segurou-a em seus braços e ouviu minhas palavras. Meu pequeno tesouro, você é a minha esperança. A esperança dela." - Um se espantou com aquelas palavras, enquanto tentava processar o que estava acontecendo - "Vá, salve a sua irmã e a si mesmo e nunca se esqueça: eu amo vocês. Diga isso a ela também"
Enquanto os olhos de sua mãe se fechavam, as chamas se tornavam mais radicais, os olhos das crianças derramavam lágrimas enquanto se tornava cada vez mais difícil de respirar, pelo menos para o bebê. A tal esperança se colocou sobre seus pés descalços, que não sofriam com o chão ardente. Deu suas costas àquele cenário e começou a andar em direção da porta.
Ao passar por seu pai para descer as escadas, parou de chorar. Olhou ao redor e finalmente começou a aceitar o adeus que apertava seu coração. Cada centímetro de casa, cada pessoa que a compartilhava, cada detalhe daquilo que chamava de vida. Tudo que amava estava sendo consumido e, aquilo que não havia deixado de existir, nunca mais seria o mesmo. As chamas, as nuvens vermelhas, mais uma vez lavaram sua vida, levando tudo no que acreditava. Fazendo-o voltar a viver.
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Um - A Escolha
General FictionUm é uma criança que está sendo forçada a fazer uma escolha. O problema é que tal escolha não afetará apenas sua própria vida, que está vindo a ruínas, mas sim, todo o planeta. Encarregado de cuidar de sua irmã mais nova Mary, Um sai em uma jornada...