Capítulo 1 - Aqueles lábios vermelhos

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Então declarou o Senhor: "Não é bom que o ser humano viva sem a companhia de um semelhante; farei para ele alguém que o ajude e a ele corresponda!"
Gênesis 2:18 (BKJ)

...

DAVI

Eu nunca me esqueceria do vermelho daqueles lábios quando os vi pela primeira vez.

Eu nunca me esqueceria do vermelho daqueles lábios porque nunca antes eu tinha visto aquele vermelho. Um vermelho que não era igual ao das armas e nem igual aos utensílios que eu usava nas forjas após entrarem em contato com o fogo. Não o vermelho que ficava na minha pele branca após ter caminhado milhões de passos num sol escaldante. Não igual ao vermelho do sangue, das vezes em que não fora um filho bom suficiente para o meu pai e, portanto, era castigado - com total apoio da Lei de Paradiso, claro.

Eu nunca tinha visto um tom de vermelho como aquele nos lábios de alguém. Talvez fosse porque ninguém perto de mim tinha o poder aquisitivo bom o suficiente - o que soa como um eufemismo, visto que ninguém que eu conhecia tinha sequer a noção do quê o termo poder aquisitivo significava - para manter sua pele branca e limpa ou seus lábios livre das rachaduras, quiçá possuir olhos com um brilho indistinto e obstinado igual aos daquele homem.

Em Paradiso estar vivo já a maior dádiva que poderíamos querer.

Ter uma pele cuidada e a barba cerrada era um feito que poucos tinham, um dos mimos inalcançáveis e que, mesmo simples, nós nem queríamos pensar sobre. Pensar ou desejar algo que não se podia ter era, de longe, uma das maiores punições existentes para alguém pobre.

E, também, quem pensaria em cuidar de si quando tinha uma família em casa para sustentar? Quando tinha uma mãe doente e um pai vagabundo, que só esbravejava contra a antiga TV, para alimentar?

Isso mesmo. Ninguém.

E, se havia alguém que mesmo nessa situação, ousava ser egoísta, eu digo: eu nunca fui desse tipo de pessoa.

Naquela época, devo lhes dizer que eu não era o mais carinhoso dos homens. Não era o mais bonito e nem o mais educado. Minha boca cheirava mal e meus ossos eram levemente aparentes graças à falta de uma alimentação. Eu muito menos falava bem, gaguejando em momentos de pressão e, pior, criando palavras que muitas vezes nem existiam, tudo por causa da falta de repertório e de devida instrução. Mas, de alguma maneira, naquele dia, enquanto ia para a forja e trombei com aquele homem, ele não pareceu notar nada disso.

Na realidade, eu suspeitava que ele estivesse bêbado ou algo assim. Ele havia me tratado tão bem e de maneira tão educada que eu suspeitei se ele estaria mesmo em suas condições normais.

- Desculpe-me, nobre senhor. - sua voz era grave e profunda, mas dotada de uma calma que parecia amolecer os meus músculos, relaxando-os como se estivessem sob o encanto de uma sereia.

Lembro-me de tê-lo avaliado por um longo momento antes de responder. Nunca havia imaginado como seriam os anjos e os santos, suas aparências ou coisas do tipo, mas admitia que, se eles fossem corpóreos, se pareceriam com aquele homem.

- Não precisa se desculpar, é que eu não tava olhando pra onde tava andando... - respondi, perdendo o fio do raciocínio quando notei que meu tom tinha soado menos educado e bem mais grosseiro do que eu considerei. Minha mente me julgou por ter uma fala tão limitada. O homem parecia tão instruído, enquanto eu...

Alguns segundos se passaram em silêncio, segundos estes que pareceram infinitos, inclusive. Ele me olhava atentamente, analisando-me quase como se estivesse vendo algo realmente precioso e digno de total atenção.

Acho que ele era sim meio louco.

- Eu é que entrei no meio do seu caminho. - justificou - Sou um pouco distraído e esbarrei em você... - ele começou.

Eu queria realmente prestar atenção em tudo o que ele dizia. Suas palavras eram bonitas, e eram entoadas por ele de um jeito que eu nunca tinha ouvido ninguém falar antes. Sabia que ele não era dali justamente por isto: o homem não falava como alguém que trabalhou durante toda a infância e adolescência e que, portanto, não pôde estudar. Mas eu só não conseguia me focar nele porque, de alguma forma - e eu não sabia qual -, meus olhos não desgrudavam dos seus lábios, que eram dotados de uma vermelhidão que me arrepiava.

Quando caí em mim, o homem estava me olhando como se esperasse a minha resposta para o que ele tinha dito. Bem, eu não tinha prestado atenção em nada do que ele havia dito...

- Relaxa moço. Já foi. - novamente fui menos educado do que queria.

Note que, neste momento, eu estava terrivelmente nervoso. A presença dele confundia a minha cabeça. Além de que, com a sua fluência toda, eu acabava me sentindo deslocado. Ser grosseiro era uma resposta natural para evitar conversas que eu não saberia sustentar depois. Mas, naquele momento, eu temi que ele interpretasse negativamente a minha atitude, o que, claro, eu entenderia se ele o fizesse.

Minha cabeça estava uma confusão. Eu não entendia o motivo pelo qual eu estava me importando com o que aquele homem estava achando de mim. Ele não pagava meus impostos e nem sabia nada da minha vida. Não deveria me importar com o que ele acharia de mim, de minha fluência ou dos meus modos.

Mas no final, bem no canto mais profundo de mim, me sentia feliz que alguém havia me notado.

Claro que eu nunca admitiria isso na época. Estava longe de entender que o buraco era muito mais embaixo do que isto.

- Eu estou te incomodando, não é? Por Deus que está no céu, me perdoe. - ele se justificou novamente - Vou te deixar em paz. Que o Senhor te acompanhe, te guarde e te encha de paz, filho. - disse ele, se afastando sem mesmo esperar a minha resposta.

Seu cumprimento para mim estalou uma memória na minha mente.

No mesmo momento o meu corpo gelou, ao mesmo tempo em que minha mente me julgava e me ridicularizava por ter agido do jeito que tinha acabado de agir.

Aquele cumprimento não era o cumprimento que uma pessoa comum fazia a outra. Aquele cumprimento, que era chamado de "benção apostólica", e era exclusivo dos homens de Deus. Ele era costumeiramente usado pelos clérigos no fim das missas e no fim das confissões.

Isso também explicava o motivo pelo qual o homem era tão limpo, polido e educado.

O homem que eu esbarrei era um padre.
E padres eram autoridades santíssimas em Paradiso.

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