PARTE II - TAKE ME TO CHURCH

24 3 0
                                    

E sucedeu que, acabando ele de falar com Saul, a alma de Jônatas se ligou com a alma de Davi; e Jônatas o amou como à sua própria alma.

1 Samuel 18:1 (ARA)

...

ANO 2052.

Os passos pesados de Ivy pela praia denunciavam o seu estado de espírito naquela manhã.

- Ivy, por favor!

- Eu não quero ouvir uma palavra sequer, Srta. Santos.

- Você sabe que eu odeio que me chamem assim.

- Mas não é assim que você quer ser chamada na frente das pessoas, Tiana? – Ivy gritou, deixando toda a sua chateação escorrer através das suas palavras. A garota de pele escura e retinta cuspiu as palavras com a intensidade de quem rasgava a própria alma. – Nunca amor. Nunca amada minha. Nunca... minha namorada.

- Meu bem...

- Agora, Tiana? Sério? – mesmo dando as costas para a mulher que amava, Ivy conseguia sentir a presença dali com perfeição. E não era apenas ali, naquela situação, claro. Era em todo lugar. A professora poderia viajar por todos os condados do Canadá, mergulhar no mais longínquo habitar das neves, e mesmo assim ela sentiria a presença de Tiana onde quer que ela estivesse. Por vezes, Ivy sentia que um radar havia sido instalado nela no exato momento em que se apaixonou pela namorada, porque, por mágica ou por conexão fortíssima, ela sempre saberia onde achar o amor da sua vida.

Isso, em alguns momentos, era muito útil, mas em momentos como aquele...

- Ivy, olha para mim, por favor. – os passos da morena foram cautelosos. Ela tinha medo de que pudesse ter estragado tudo com a amada.

Era difícil.

No mundo em que elas estavam era só... Tiana estava tão acostumada a esconder quem ela era que, mesmo tendo vindo para o abrigo que o governo canadense abriu para todos os LGBTQs do mundo – oferecendo-lhes habitação segura e comida –, ela ainda se sentia amedrontada de demonstrar carinho publicamente com a única pessoa que ela ainda amava no mundo.

E isso era horrível. A discussão delas tinha sido horrível.

Tiana tinha vindo até ali por isso, porque ela sabia que precisava se concertar com a mulher que amava. Tinha que se retratar e explicar o que acontecia. Porque ela não podia dormir sabendo que a mulher que amava se quebrantava em tristeza por ela. Ela precisava se retratar com a sua namorada porque, simplesmente...

...ela não podia perdê-la.

Na realidade, Tiana Santos não podia perder mais ninguém.

Ivy estava chateada e isso era fato. A morena sabia que a irritação da namorada era compreensível, muito inclusive, mas... ela tinha que entender. Ela precisava entender. Tiana dependia da compreensão de sua amada, porque não poderia dormir mais uma noite que fosse sem o corpo de sua namorada junto ao dela. Porque Ivy era a única pessoa que afastava os pesadelos de Tiana.

Somente atracada e amassada contra a sua mulher é que a morena conseguia se sentir segura.

- Eu ainda tenho medo, Ivy. – confessou Tiana, sentando-se na areia. Seus olhos estavam presos na nuca de Ivy. Queria tanto beijá-la. – Eu ainda tenho muito medo de tudo. – suspirou – Eu acordo todo dia pensando em quando tudo isso vai acabar. Porque, sabe, esse acordo de paz fingido não vai durar muito tempo. Eu sei e você sabe disso muito bem. O mundo tava uma merda. De repente o Canadá veio com esse acordo de abrigar todos nós aqui. Mas o mundo ainda é o mundo, Ivy. O mundo ainda é o mundo, e eu tenho medo do dia em que todos lá fora se cansarem de esperar. Porque eu sinto que eles estão lá fora só esperando pelo momento em que estaremos fracos para, sei lá, nos apunhalar de uma vez. Milhões e milhões de viadinhos, sodomitas e sapatonas mortas de uma vez. E eu tenho medo, Ivy. Eu tenho muito medo.

Tiana não notou que estava chorando até o momento em que sentiu os braços de Ivy ao seu redor. No peito da mulher da sua vida ela chorou as lágrimas que tentou suprimir por todos esses dias. Trabalhar na polícia era bom, mas como mulher – e lésbica – ela se sentia na obrigação de não demonstrar uma fragilidade sequer. A menor rachadura em sua armadura já seria o suficiente para que seus companheiros de trabalho a chamassem de fraca, tirando a credibilidade de seu trabalho e, principalmente, deixando claro que ela não deveria estar ali.

E foi por isso que, no fim das contas, Ivy foi repreendida por Tiana na frente de todos. Ela reconhecia que tinha sido da maneira errada, com as palavras erradas e, principalmente, com a pessoa errada... mas ela só tinha tanto medo. Tiana tinha medo de que seus colegas vissem a sua namorada e, finalmente, enxergassem a fraqueza que ela não poderia expor.

Porque Ivy era sim a fraqueza de Tiana, ao mesmo tempo em que era o seu ponto de paz e a viga forte que sustentava a policial. Seu ponto fraco, mas também a sua pedra angular.

- E eu sei que eu pisei na bola, meu bem. – Tiana fungou no peito de Ivy – Eu sei que eu não deveria ter falado aquilo, ainda mais ter falado daquele jeito. Mas é que eu sou tão acostumada a fugir. Eu sou tão acostumada a fingir e a ser sozinha, que eu não sei como é ter que lidar com alguém que eu ame tanto a ponto de me preocupar mesmo com o que aquela pessoa possa sentir com o que eu digo. Eu sempre fui grossa e eu aprendi a ser assim porque... bom, é a melhor forma de afastar as pessoas. Porque eu não queria ser vista, Ivy. Eu nunca quis ser vista. Porque eu sabia que se alguém me visse de verdade, eu seria presa na hora. Porque o mundo é ruim com gente como a gente. Você sabe disso.

- Eu sei, meu bem. Eu sei. – as mãos de Ivy estavam nos cabelos de Tiana em um carinho leve, tão sensível que parecia com o soprar calmo da brisa do mar. Por momentos Tiana sentia que era como se o próprio mar estivesse acariciando-a – Mas você tem que entender que eu estou aqui por você, Tiana. Eu sempre estou aqui por você. Estive desde o momento em que bati os olhos em você pela primeira vez, e sempre estarei.

- Mas eu tenho... – a voz desconsolada parecia refletir exatamente como ela se sentia por dentro – O mundo é tão injusto. – foi só o que ela soube dizer.

- Mas nós tivemos uma segunda chance. Eu e você. – Ivy segurou o rosto de sua amada, levantando-o para que olhasse em seus olhos. Mesmo depois de três anos juntas, a professora ainda sentia palpitações ao olhar o rosto da policial. Jamais tinha amado alguém daquele jeito, e ela sabia que, por mais difícil que o mundo externo fosse com pessoas como ela, jamais se arrependeria de ter dado o seu coração para aquela mulher – Os embates na África do Sul te destruíram, eu sei. Não foi nada melhor comigo no Brasil, com a ditadura daquele fascista nojento, mas nós tivemos uma segunda chance. O mundo externo nos ignora, e nós nos damos o luxo de imaginar que eles sequer existem.

Tiana deu um leve sorriso, não por acreditar fielmente nas palavras de sua namorada, mas porque era o que ela sabia fazer ao olhar aquele rosto lindo e aquelas íris castanhas.

Aquele foi o momento em que ela soube que, por mais tumultuado que o mundo fosse, Ivy seria sempre a sua esperança.

Nada mais foi falado. Os lábios das suas se uniram quase como uma prece, calma no início, mas furiosa depois de um tempo. Elas se amavam e, tal como o amor, elas tinham necessidade uma da outra. Não era algo necessariamente sexual. Na realidade, aquilo tinha tudo e nada a ver com sexo.

Era uma questão mística, quase como um encontro de almas. A religião tinha se tornado uma ditadura naquela época, um apego com o que Deus gostaria ou não segundo leituras absurdas da bíblia. Porém, naquele momento, Ivy e Tiana tinham a sua própria religião: uma a outra. Elas sabiam que, se Deus era realmente amor, então elas estavam se entregando como oferenda para ele.

Com um beijo elas declararam – entre sussurros ditos entre lábios – o quanto se amavam.

Concentradas, uma nos olhos da outra, elas não viram o míssil que cortava o mar em direção a costa da praia onde estavam.

E, antes que pudessem dar mais um beijo, tudo explodiu.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Aug 20, 2019 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Paraíso InterrompidoOnde histórias criam vida. Descubra agora