Capítulo 2 - Palavras marcadas na pele

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Oh Deus, salva-me porque estou na água até o pescoço! Estou atolado num lamaçal muito fundo, não tenho onde apoiar os pés. Entrei em águas profundas, e a correnteza quase me afoga. Estou rouco de tanto gritar por socorro, e a minha garganta está ardendo. Os meus olhos estão cansados, esperando que tu, meu Deus, venhas me socorrer.

Salmos 69: 1-3 (NTLH)

...

JÔNATAS

- O que você estava fazendo pela cidade?

A pergunta do Frei Lucian II era simples e muito direta. Ele não tinha floreios na voz e nem muita diferenciação de expressão. Tudo o que dizia tinha uma única entonação e era quase como se ele fosse algum tipo de robô programado ou coisa assim - mesmo que eu soubesse bem que esse tipo de tecnologia fora exterminada junto com a Grande Guerra. Ele falava como um orador que têm uma leitura em voz alta para fazer, mas que não se preparou previamente e que, portanto, não sabe as entonações corretas a serem usadas em cada frase.

- Procurei olhar os moradores por um momento. - respondi, tentando ser o mais sucinto possível, mesmo sabendo que de nada adiantaria. O velho tinha olhos de águia.

- Receio que terei que contar isso para o seu pai, Jônatas. Sabes perfeitamente que padres e seminaristas não podem perambular pela cidade sem um aviso prévio ou um pretexto muito convincente. - respondeu o velho - E você sabe melhor do que qualquer um aqui sobre a quantidade de grupos que são contra nós. Pessoas que esperam ansiosamente por apenas uma pequena brecha nossa para, então, nos atacar. Não podemos nos dar ao luxo de que um seminarista pequeno nos coloque em posição de desvantagem assim, além de nos desmoralizar quanto ao povo.

- Por favor, Frei Lucian, não faça isso. Eu te imploro. - andei até ele e toquei a sua mão num impulso tolo.

No mesmo momento percebi o meu erro.

Senti o estalar do tapa em meu rosto antes mesmo que pudesse perceber o movimento de suas mãos.

- Seminarista Jônatas eu já lhe deixei bem avisado sobre os limites entre os nossos sacerdotes. - sua voz agora estava mais agressiva, finalmente quebrando a neutralidade em suas palavras - Receio que a próxima vez que vê-lo tocar outro servo, tu terás que ser castigado. Já é a oitava infração nesta quinzena. Estou contando todas elas, por sinal.

Seu olhar era ameaçador. Os olhos fundos, abatidos e cansados do idoso - que todos especulavam ter por volta de oitenta anos - estavam cheios de fúria. Ele era um dos mais metódicos sacerdotes da Ordem no Distrito de Samaria, além de ser o chefe sacerdotal de todo o Distrito. Talvez o seu tratamento rígido e absurdamente regrado fosse o que mantivesse aquele lugar em ordem, já que todos os membros da Ordem, ou padres que aqui trabalhavam - com exceção de mim -, mantinham-se no local por obrigação.

O Distrito de Samaria, o mais pobre de toda Paradiso, era o último lugar que a elite intelectual do país gostaria de estar, claro.

Minha bochecha latejava de dor no lugar onde fui acertado. A pele ardia, quente, e com certeza trazia uma marca vermelha ao redor. Uma lágrima boba escorreu dos meus olhos, insistente e guerreira, vencendo o ímpeto de tentar me manter forte perante Lucian, não querendo dar o gosto para o velho Frei de me ver vulnerável.

Como sempre, eu falhei.

Seus olhos mantinham-se presos em mim, mas consegui sentir o leve iluminar de sua expressão. Parecia feliz com a minha fragilidade exposta.

Carrasco.

- Conte tudo para o meu pai, então. - consegui dizer com a voz embargada pelas lágrimas antes de ir para o meu quarto, que ficava no alojamento atrás da grande Catedral.

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