Capítulo 5 - O Lado Confortável do Chão

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Vou levantar-me, vou rondar pela cidade, pelas ruas, pelas praças, procurando aquele a quem ama o meu coração.

Cantares de Salomão 3:2a (BKJ)

...

DAVI

- Davi?

Meus olhos estavam pesados, ainda sentindo a névoa do sono, que me embaçava a visão.

- Davi? - a voz doce, mas grave de Jônatas ecoou pelo quarto escuro.

Que horas eram? Duas da madrugada? Três?

- Jônatas? - perguntei ainda embargado de sono.

- Está acordado? - a sua voz vinha da cama, logo acima de mim.

Tinha conseguido, depois de muita insistência, fazer com que ele aceitasse pernoitar por aqui. Os cavalos estavam tranquilos, mas temia que o estresse os fizesse surtar novamente e, por isso, não poderia arriscar. Era melhor dar a eles - e a Jônatas - uma noite de sono tranquila antes de seguir viagem.

Claro, ele não aceitou sem resistência. Ele jamais aceitava nada sem resistir muito antes. Com o tempo eu aprendi que essa era uma das suas maiores virtudes. Jônatas sempre foi muito taciturno, sempre muito desconfiado das pessoas. Eu demorei demais para entender os seus motivos para isso, mas quando entendi tudo, quando ouvi de sua boca as tais palavras, eu o compreendi totalmente.

Claro, eu poderia ter notado isso antes. Seu olhar que nunca se mantinha tempo demais no meu, seus toques sempre curtos e nunca propositais... as suas frases... Hoje eu entendia. Mas, na época, eu não os compreendia direito. Nunca fora muito bom para entender os sinais das pessoas, no máximo sabia quando alguém mentia para mim ou quando escondia algo. Mas identificar quando alguém estava afim de mim ou não? Jamais. Por isso, para mim, os sinais que ele me passava eram sempre conflitantes demais na minha cabeça.

Talvez, claro, se eu soubesse que ele gostava de mim desde o início... os sinais seriam mais claros na minha mente. Se eu soubesse, conseguiria associar o seu tom amoroso e o seu jeito de sempre evitar toques em mim e, finalmente, concluiria que ele estava sendo apenas cuidadoso, e não que sentia nojo de mim ou qualquer coisa do tipo.

Mas na época eu não sabia.
E demorei em saber.

Era complicado.

Ele sorrira muito para a minha família. Meu pai o tratou como um marajá, tal qual sempre tratava os membros da Ordem em sua frente - enquanto, por suas costas, praguejava contra eles e os difamava de todas as formas possíveis. Minha mãe, ao contrário da falsa simpatia de meu pai, o abraçara como se ele fosse eu: como um filho amado. Conversaram animadamente, trocando comentários ou dicas sobre a receita que ela fazia: um ensopado de frango com algumas das ervas que ela mesma plantou.

Por um momento eu a vi resplandecer.
Era quase como tê-la novamente, mas sem a doença.

Era difícil, para mim, vê-la sofrer tanto. Eu sempre fui muito apegado a ela. Quando criança meu pai brigava comigo - e com ela - por sermos tão próximos, dizendo que não seria bom para a minha masculinidade o fato de ser tão grudado com uma mulher, visto que eu poderia me tornar sensível igual a ela - coisa esta que ele odiava com todas as forças; além de ser, também, o motivo principal ao qual ele adorava caçoar dos membros da Ordem, que costumavam ser, ao menos socialmente, sempre lotados de piedade, cheios de uma ternura tímida e de uma calmaria ímpar.

Porque pra ele era um crime que uma mãe e um filho fossem melhores amigos, ou confidentes um do outro.

Em alguns momentos eu pensava se meu pai tinha mesmo a capacidade de entender o que era uma família. Talvez ele até entendesse, mas não nos considerasse tal.

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