Capítulo 3 - Aquele que pisa em serpentes

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Eis que vos dou poder para pisar em serpentes e escorpiões, e toda a força do inimigo, e nada vos fará dano algum.

Lucas 10:19 (ARC)

DAVI

A vida na minha casa andava de mal a pior.

Minha mãe, àquela que eu adorava sempre sorrir e apontar para todos como o grande amor da minha vida, estava doente há anos, sofrendo de uma doença que médico algum conseguia identificar ou solucionar. Bem, atualmente eu entendo muito bem o que mamãe tinha na época, mas, quando ela adoeceu, nós não tínhamos instrução ou poder aquisitivo o suficiente para pagar um médico de verdade para ela. Médicos eram privilégios para os moradores de outros distritos ou, pior, para àqueles que tinham realmente muito dinheiro. O que nós, cidadãos do distrito de Samaria, tínhamos, eram os padres, que não diagnosticavam nada além de pecados – e pelo que mamãe tinha, para eles, era decorrente de muitos e muitos pecados.

Enquanto minha mãe sofria, mas continuava tentando nos reerguer, meu pai estava... sendo ele, como sempre. Ele nunca foi uma pessoa muito útil, trabalhadora ou amorosa. Cresci sem saber o que era um pai de verdade. Ele sempre foi aquela pessoa que aparecia no fim da tarde, normalmente cheirando a alguma bebida barata – já que gastava o resto do nosso dinheiro com isso, sempre – ou, em dias que tínhamos menos sorte, ele era o que aparecia irritado, que discutia e destratava a minha mãe e que me surrava sem motivo aparente, apenas afirmando que aquilo era para que eu criasse uma casca grossa e parasse de ser tão sensível e vagabundo¸ já que o filho dele não poderia ser um homem frouxo como os filhos da Ordem ou os grandes proprietários dos outros distritos.

E em Paradiso isso não apenas era comum, como era incentivado. Com o tempo eu entendi o termo usado pra isso: o país todo era patriarcal. Paradiso era um lugar que acreditava fielmente que os homens, por terem sido feitos primeiro, e na imagem e semelhança de Deus, tinham a superioridade sobre todos os outros seres humanos – sejam mulheres ou crianças. Eles podiam ordenar, e a submissão dos outros grupos tinha que ser real. Os homens trabalhavam fora e ordenavam dentro de suas casas, e as mulheres – já que a simples menção de um homem morar com outro já era punível com a morte – estavam ali para serem submissas aos seus maridos. Deviam estar sempre prontas para satisfazê-los em tudo, além de estarem aptas e dispostas para cuidarem da casa, dos filhos e do próprio cônjuge. Elas tinham sido criadas como companheiras e sua única função era esta: acompanhar e amar incondicionalmente.

Na época isso já não parecia justo para mim. Mas, como eu nunca tinha visto nenhuma mulher reclamar, eu sempre achei que elas acabavam aceitando com o tempo. Sempre questionava minha mãe sobre isso, se ela não se enojava do meu pai ou se ela não desejava lançar uma das facas da cozinha em seu peito às vezes. Na maioria das vezes ela ria e elogiava a minha criatividade, nunca sem antes dizer que um dia eu entenderia tudo aquilo.

O tempo passou e hoje eu entendo bem: as mulheres que não se encaixavam nesse padrão de obediência eram mortas ou usadas de formas que, sinceramente, eu não gosto nem de me lembrar ou citar.

As mulheres não aceitavam a submissão de bom grado, elas aceitavam aquilo para continuarem vivas.

Hoje eu entendia. Mas na época a única coisa que eu ouvia era isso, sobre a minha criatividade.

Num dia ela disse que eu lembrava muito o meu pai quando eles se casaram. E talvez eu nunca tenha me sentido tão ultrajado em toda a minha vida.

Como poderia eu ser parecido com ele? Como poderíamos ser sangue do mesmo sangue e, mesmo assim, sermos tão diferentes?

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