Os boatos são verdadeiros: sacos não são muito confortáveis.
Felipe teve mais ou menos duas horas inteiras para se certificar disso. Talvez até mais, se considerar o período em que estava desacordado...
O carro havia parado bruscamente. Felipe estava no porta malas, sabia pois o espaço era limitado e, como podem imaginar, a experiência da viagem foi... Bem, com certeza não foi como viajar num avião da Avianca.
Se o cara estranho que o sequestrou oferecesse uns pacotes de Fini ao abrir o porta-malas, Felipe consideraria um perdão.
É, não foi isso que aconteceu.
- Chegamos. Vou desamarrar o saco, você vai fechar o bico e vai me seguir. Sem gracinhas, sem perguntas e muito menos chorar. Tudo vai ser explicado quando chegar o momento.
Felipe fez o que qualquer pessoa sensata faria: gritou o mais alto que pode enquanto se debatia loucamente, na intenção de acertar o ponto fraco de seu sequestrador (e de qualquer outro homem) e fugir. E o que ele ganha com isso? Mais uma viagem desacordado.
Mas essa foi bem diferente.
Ele teve uma especie de sonho, onde estava num lugar não muito estranho, com árvores e um grande gramado. Ele estava perto de um obelisco branco muito alto que, como um estalo, denunciou o local onde estava. Era o parque Ibirapuera, onde costumava passear quando menor com seu pai.
Estava escuro, mesmo com a iluminação do local e a majestosa luz de uma lua cheia. O parque estava um deserto, totalmente silencioso, o que era de se esperar considerado o horário que aparentemente se aproximava das três horas da manhã.
Tudo permanecia tranquilo e silencioso, até que, com um estrondo, um raio Violeta atingiu o solo destruindo uma boa parte do piso branco que rodeia o obelisco. Do raio se materializou um homem moreno, com cabelos muito compridos e escuros e nu. Seu corpo não podia ser visto, por conta da nuvem de poeira formada pelo raio porém Felipe conseguiu ver correntes de energia percorrendo seu corpo desenfreadamente. Em sua mão direita segurava uma espécie de cajado, que brilhava na mesma cor do raio que havia caído.
O homem movimentou sua cabeça em sentidos circulares, como fazemos depois de uma longa viagem sentados num ônibus, e olhou na direção de Felipe, com olhos amarelos âmbar incrivelmente brilhantes e tenebrosos, abrindo um sorriso mais assustador ainda.
E nesse momento Felipe recuperou a consciência. Agora ele se encontrava amordaçado, amarrado numa cadeira de madeira com uma lâmpada sobre sua cabeça e, sentado com um sorrisinho, bem fofo comparado ao sorriso do cara dos sonhos, estava o sequestrador número um da América latina, amolando uma adaga.
Em momentos de medo e tensão Felipe costumava rever suas ações para tentar entender o que diabos ele havia feito para estar naquela situação. Nesse caso, por mais que ele se esforçasse, não conseguia achar um motivo. Ele estava com a consciência tão tranquila que poderia apostar que estava na lista dos bonzinhos do Papai Noel.
Aparentemente ele estava muito enganado.
Então Felipe ouviu passos, lentos e firmes, se aproximando dos dois.
-Me parece que Breno foi um pouco indelicado com você, querido.
Então a luz revelou um rosto severo porém gentil, olhos brilhantes, profundos e escuros como um céu noturno, por sinal muito conhecido por Felipe.
- Vovó?! V- você me sequestrou? Tá legal, ainda estou dormindo, só pode ser isso.
- Por acaso não se lembra quem esse rapaz é, ou se lembra querido?
- É claro que não, nunca vi esse cara em toda minha vida. Pode me explicar o que está acontecendo, por favor?!
- Isso não foi um sequestro querido, foi um resgate. Tivemos sorte de Breno ter sido o primeiro a chegar na sua casa, na verdade muita sorte mesmo.
"Eu pedi que Breno te trouxesse aqui o mais rápido possível, da maneira mais rápida possível. Só não imaginava que ele fosse usar um dardo tranquilizador em você e sua mãe, sinto muito por isso."
- Como a senhora disse, "o mais rápido e prático possível"- disse Breno com um sorriso sarcástico.
- O que importa mesmo é você estar em segurança agora... Oh meu Deus, Breno - Disse a senhora ao ver o neto amarrado com vários nós e se apressando a desatá-los.
- Ele teria feito um escândalo se estivesse solto, e nem estão tão apertados...
- Claro que não, realmente muito confortáveis e frouxos, quase igual aquele nó que você deu NO SACO QUE USOU PRA ME SEQUESTRAR.
- Viu só?! Chilique.
- Ok, ok. Parem vocês dois. Venha querido, preparei um chá para você, vamos precisar conversar um pouco.
***
Ver a avó só tornou tudo aquilo mais estranho ainda, um simples " Querido, sinto saudades. Venha me visitar" ou "preciso conversar com você um pouco" já era o suficiente para Felipe. Ok, aparentemente a situação requeria atitudes mais... drásticas. No momento Felipe começou a refletir seriamente em relação a suas atitudes tomadas até o momento, o que ele havia feito?
Ao menos sentar naquele banco de madeira, forrado com as almofadas mais macias e fofinhas que Felipe conhecia e sentir o leve cheiro de chá de erva-cidreira, que só sentia em suas viagens feitas para a a casa de sua avó, lhe tranquilizava um pouco.
- Mais açúcar querido?
- Não vó, tá beleza. Só respostas, por favor.
- Querido, o que vai ouvir agora pode não fazer muito sentido, pode te assustar e fazer sua vida mudar completamente. Porém é seu dever escutar atentamente e cumprir com seu destino. Nada pode ser evitado no momento, por mais que eu ou você queira.
" Como sabe, sua linhagem por parte de sua mãe é européia, muito antiga e respeitada. Vieram para o Brasil em épocas muito próximas ao suposto descobrimento. Porém sua linhagem por parte de pai, a minha linhagem, vem de muito mais tempo que isso. Somos parentes distantes dos indígenas aqui habitantes, os brasileiros originais. Somos herdeiros de uma raiz muito forte, cravada do coração desse lugar e tudo o que ele carrega.
Já deve ter ouvido lendas, histórias e até músicas sobre o nosso folclore brasileiro, com certeza. Mas saber que a verdade sobre toda a nossa realidade... Bem, acho que já é a hora de você conhecer"
Um silêncio envolveu a sala. Fellipe encarou a avó e o livro com capa de madeira e uma árvore entalhada como ilustração central. Olhou para Breno, que permanecia focado em afiar sua adaga. Encarou novamente sua avó, na esperança de encontrar sinais de uma brincadeira muito bem bolada. Nada.
Ele esticou as mãos em direção ao livro, novamente observando a árvore que, curiosamente, agora reconhecia ser uma Acácia e, com toda sua força, atirou o livro ao chão.
- Eu não tô acreditando nessa palhaçada. Isso é... Isso é ridículo! Sabe o quão apavorado eu fiquei ao ver tudo aquilo, minha mãe ser dopada enquanto eu era sequestrado por um hippie maluco, tudo isso para que minha avó provavelmente chapada com essas ervas que usa pra fazer chá, que por sinal duvido muito que seja camomila ou hortelã, me conte historinhas para dormir sobre a Iara e sua turminha.
Ele chutou o livro o mais forte possível e saiu em disparada em direção a porta principal da velha cabana que conhecia como a palma da mão, ou pensava conhecer até descobrir uma sala de interrogatório. Corria como nunca para longe da avó, que conhecia tanto quanto a velha cabana, ou talvez estivesse tão enganado quanto estava em relação a mesma.
- Eu sabia que tudo isso era perda de tempo. Claramente não é ele, a senhora se enganou dona Nana.
- Não Breno, essa é a certeza mais forte que meu coração já sentiu. Só espero que ele leve o menor tempo possível para compreender isso. Para entender que quando os ventos do destino decidem uivar, é preciso seguir a corrente que levará o barco a frente. É preciso atender o chamado.
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O Chamado do Vento Uivante
Приключения" Quando se recebe um dever do destino, é necessário atendê-lo. Quando o vento uivante sopra, é seu dever escutar." O Brasil esconde diversos segredos, dos seus tempos mais antigos até os atuais. Um problema foi causado por conta de um desses segr...