Kaî!

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Felipe começou a correr imediatamente, mas quando estava bem próximo do local, achou melhor analisar o cenário antes. Poderia ser uma armadilha, ou qualquer outra coisa que seria melhor não ter encontrado.
"É, acho que é o que Breno faria".
Felipe se escondeu atrás do tronco de um pinheiro e tentou ver o que estava acontecendo.
Com muito esforço, era possível identificar garras ferozes tentando alcançar um vulto muito rápido.
Felipe nunca havia visto uma onça de perto, ainda mais usando a mesma máscara branca de ossos no rosto. A onça conseguiu acertar o vulto, pulando sobre o revelado corpo que se debatia tentando escapar.
Breno com certeza não teria arremessado uma pedra numa onça sanguinária. " É, mas Breno teria um arco e flechas mágicos!"
A onça mascarada perdeu no momento em que olhou para a direção de Felipe. Esse intervalo foi mais que suficiente para que o seu oponente a lançasse dois metros adiante com um único chute.
Desorientado, o animal cambaleou de um lado ao outro. Nesse instante, o guerreiro avançou numa velocidade absurda, com uma espécie de clava nas mãos. Prestes a finalizar o combate, o guerreiro surpreendeu Felipe: soltou sua arma ao chão e, recitando palavras desconhecidas por Felipe, arrancou com a mão direita a máscara de ossos do animal. Ao se desvincular da face do animal, a máscara levou consigo uma espécie de aura sombria, que dava o aspecto de sombra ao animal.
Logo depois, o guerreiro soltou a máscara ao chão e, recitando ainda mais frases numa lingua estranha, reduziu o objeto à cacos, com sua clava poderosa.
Até então, Felipe não havia encarado o rosto do guerreiro, mas quando ele se virou, com olhos brilhantes e amarelos, e caminhou vagarosamente na direção do garoto ofegante, foi possível enxergar, graças a luz da lua que agora aparecia, uma pele avermelhada, cabelos grandes e espetados unidos a um corpo tatuado e com adornos indígenas.
Felipe saiu de trás da árvore e encarou o guerreiro.
- V-você é, tipo assim... inimigo das sombras também?
O guerreiro inclinou a cabeça para a direita, com uma expressão curiosa.
- Você consegue me entender? Meu nome é Felipe. Eu tô perdido e preciso de sua ajuda, por favor.
O guerreiro fechou os olhos e realizou um movimento circular com a mão, direcionado a Felipe.
- Você não Felipe.
- ... É o que?!
- Mim Caipora. Espirito guardião animais e mata.
Felipe recordou- se das lendas que sua avó contava quando ele era criança. A história de um espírito protetor dos animais e das florestas.
As palavras da avó de Felipe ainda eram frescas na memória: "Esse espírito é conhecido por fazer armadilhas e confundir aqueles que possuem intenções ruins".
O Caipora agachou próximo ao corpo inerte da onça. Ele acariciou com delicadeza o corpo do animal que, aos poucos, foi retomando movimento.
- Mim sabe onde seus amigos estão.
- Sério? Pode me levar até lá?
- Muito perigo. Você fraco demais. Ainda.
- É, eu sei. Mas se eu não fizer alguma coisa... todo mundo vai...
- Coração valente. Mim não poder ajudar, proteger animais. Quebrar mais máscaras. Mas você lutar com coração.
O Caipora estendeu a Felipe a clava que ele havia usado.
- Eu... preciso de ajuda.
- Não estar sozinho. É fraco, mas lutar por amigos, forte.
Caipora sacudiu a clave, na intenção de Felipe pegar logo.
- Se eu morrer, você pode dizer a minha avó e minha mãe que eu amo elas? Que eu sinto muito e...
Caipora bateu com a clave na cabeça de Felipe, depois estendeu novamente.
- Tá, entendi.
Ao empunhar a clava, uma luz azul contornou o objeto, fazendo com que ele assumisse uma nova forma (semelhante a um taco de baseball) e um tom avermelhado (mais próximo de vinho).
- Da hora.

O Caipora guiou Felipe até onde se encontrava a Pedra Grande, uma área de granito muito alta. De lá, Felipe pode ver, com dificuldade, muitos prédios tomados por árvores e plantas. Alguns tinham raízes saindo pelas janelas.
- Entrada por alí- Caipora indicou a entrada de uma caverna.
- Olha só, uma caverna! Conveniente, não?! É tudo o que eu queria fazer: caminhar ,à meia noite, numa caverna cheia de sombras sinistas. Sozinho.
- Quando escuro: kaî.
- An? Sabe cara, você já fala de um jeito difícil de entender, ai você resolve misturar com essa outra língua que...
Demorou uns instantes para Felipe perceber que estava realmente falando sozinho. Com um suspiro, ele posicionou o bastão sobre o ombro direito, apertando até as dobras dos dedos ficarem brancos, e seguiu a trilha.
Lá dentro era bem escuro. Felipe preferiu não apoiar nas paredes para andar, relutante em encontrar algo desagradável, resultando em tropeços e batidas em curvas.
- Que saco. Da próxima vez vou fazer aquele cabeludo metido a besta pegar uma lanterna antes de sairmos para qualquer lugar.
Felipe caminhou por mais um tempo, até um sonoro "Creck" sair de um passo.
- Eita nois.
Felipe tateou o chão com os pés, encostando em coisas que crepitavam e rolavam. Felipe julgou serem apenas galhos e pedras.
A preocupação mesmo começou quando ele ouviu outro "Creck" sem ter dado um passo.
- Quem está ai?
Felipe se arrependeu em perguntar. Num intervalo de três segundos foi lançado contra a parede e caiu de joelhos nos galhos do chão. Felipe se levantou rapidamente, para logo ser atingido no estômago, perdendo o fôlego.
Felipe levantou novamente, desorientado. Tentou prestar atenção no som dos passos do inimigo, mas estes eram inexistentes. Dessa vez, Felipe recebeu um corte no braço esquerdo.
Um grito de dor escapou de sua garganta. Ele soltou o bastão e colocou a mão sobre o ferimento, sentindo um líquido quente escorrer pelo braço.
Se a situação continuasse assim, Felipe não aguentaria muito mais tempo, que , aliás, já estava se acabando.
O garoto pensou em permanecer no chão. Suas forças eram insuficientes e seus esforços inúteis.
" Breno e os outros depositam suas esperanças em você. Todos precisam de você agora. Se você se abandonar nesse exato momento, estaria traindo a confiança de todos que te amam".
A voz na mente de Felipe o fez tentar mais uma vez.
Felipe recuperou sua arma e tornou a se levantar.
Em alerta, Felipe tentou localizar o inimigo novamente. Como seus movimentos eram silenciosos, Felipe só conseguiu pensar em uma única maneira de saber onde o adversário estava. Felipe atirou uma pedra do chão para cima, adquirindo a consciência de que o teto era alto.
- AAAAAAH!!
Felipe gritou alto e, logo em seguida, usou seu poder de salto e se preparou para acertar o inimigo com o bastão.
" Lembre- se do que Caipora disse: Quando escuro..."
- KAÎ!
A clava nas mãos de Felipe instantaneamente acendeu em chamas, acertando em cheio a máscara de ossos de uma, agora revelada, sombra assassina.
Felipe aterrissou ofegante. A luz da clava revelou o cenário completo: ossos carbonizados espalhados pelo chão. Centenas deles.
Felipe conteve a vontade de vomitar, em parte por eatar em choque e a outra parte era por perceber que mais sombras estavam a caminho por uma passagem à direita.
Felipe concluiu que não poderia perder mais tempo com outras sombras, preferindo apagar as chamas de sua clava e seguir o caminho. Ele esperou as sombras chegarem até o local e atirou um crânio na direção do túnel de saída. As sombras seguiram o barulho apressadas, abrindo caminho para Felipe seguir em frente.
O caminho levava a um novo túnel, que seguia mais e mais fundo até Felipe conseguir ouvir uma espécie de música sendo cantada por vozes graves e perfeitamente sincronizadas. Era possível notar luzes azuis iluminarem um novo salão, agora infestado de sombras mascaradas, adolescentes e um senhor desacordados, enrolados por raízes gigantes que emergiam do chão.
No grande salão de pedra, havia em destaque um garoto de aparentes onze anos de idade, com cabelos e pele brancos como cal flutuando poucos centímetros do chão. Ele circulava reféns com os olhos semicerrados, mãos para trás e um ar de superioridade.
- Não. Ele definitivamente não está entre estes aqui.
" Existem um ou dois um pouco interessantes, mas o resto é totalmente inútil ao chefe... daquela maneira".
Com um aceno de braço, o menino moveu os corpos inconscientes de Breno e do pobre Dr. Sérgio para perto de si enquanto dizia: " vocês podem cuidar do resto".
Então, uma sombra mascarada se aproximou de um dos netos de Sérgio e, num gesto desesperador, fincou seu punho no peito do rapaz.
Felipe conteve o impulso de vomitar. Não tinha coragem de continuar a assistir o que aconteceria a seguir. Suas lágrimas corriam ao rosto tão rápido quanto o coração batia.
Ele apertou a clava, seus sentimentos de medo, ira e agonia se misturavam e faziam com que a arma fosse aquecendo sem mesmo utilizar as palavras mágicas.
Felipe saiu de seu esconderijo e evocou as chamas de sua clava e, num movimento desesperado, saltou para o meio das sombras distraídas, atingindo o chão com sua arma. O impacto foi poderoso, alastrando uma explosão de chamas que derrotou as sombras mais próximas e lançou contra as paredes as mais afastadas.
-Largue meus amigos AGORA!
O garoto-fantasma pareceu se assustar por um pequeno instante, seus olhos abriram e as sobrancelhas levantaram denunciando-o. Mas este efeito não durou muito tempo, logo sua expressão fechada e indiferente reassumiu posição na face do menino, que flutuou rapidamente na direção de Felipe.
Os olhos de Felipe estavam focados no garoto, ignorando as outras sombras que estavam se recuperando do ataque. Ele investiu contra o menino, que desviou o ataque rodopiando no ar e, novamente com um aceno de braço, fez nascer uma raíz gigante do chão, que empurrou Felipe para longe com a força de um coice.
Felipe se levantou rápido, mas logo foi pego por mais outras raízes, que enrolaram seu corpo num segundo.
- Que inseto seria você?- perguntou o menino, flutuando com os olhos bem próximos dos olhos de Felipe.
Recusando-se a responder, Felipe tentou se soltar das fortes raízes, inutilmente, rendendo uma gargalhada do fantasma.
Agora todas as sombras estavam cercando Felipe, apontando lanças e facas contra seu corpo indefeso.
- Não há nada de especial nesse também, além de uma audácia e burrice sem limites. Arranquem o coração.
O menino deu a ordem, todas as sombras se prepararam para cumpri- las. E nesse instante, Felipe fechou os olhos em extremo desespero.
Foi quando tudo e todos pararam. As sombras, o menino e Felipe observaram surpresos o altar onde se encontravam as vítimas, onde se encontrava a fonte de uma luz prateada e incandescente. Onde se via uma bela Teresa flutuando, com cabelos brancos como o do menino, mas de um jeito mais... angelical.
Seus olhos, mesmo de longe, exibiam um tom escuro como a noite, salpicado de pequenos pontos brancos e brilhantes. Ela parecia extremamente séria, encarando o menino flutuante (que agora parecia extremamente apavorado).
Ela respirou fundo, intensificando seu brilho a ponto de não ser mais possível enxergar.
A partir daí, Felipe só pode ver flashes: Teresa estava bem próxima dele, com Breno desacordado apoiado em suas costas. Depois estava segurando as mãos brilhantes de Teresa, sobrevoando a mata que ele havia percorrido mais cedo. E, por fim, viu Breno, Teresa (agora completamente normal) e ele próprio despencando do céu em direção à copa de árvores extremamente altas.

 O Chamado do Vento UivanteOnde histórias criam vida. Descubra agora