Os olhos de Nady eram frenéticos e penetrantes porém convidativos. Eles despertaram em Felipe a vontade de participar da queda de braço, a vontade de vencer.
As mãos se tocaram. havia sido um aperto bem firme. Naquele momento Felipe havia tido certeza que Nady não era uma senhorinha normal (e não, o cabelo roxo e gostar da Claudia Leite não foram suficientes) e que aquela não seria uma queda de braço comum.
- Valendo!
E de repente os curtos e coloridos fios de cabelo de Nady dançaram ao vento, com uma energia assustadora e esmagadora sendo emanada dela. Seus olhos brilhavam, literalmente, com vitalidade.
Ficou óbvio que o jogo não durou muito tempo, porém Felipe também se sentiu estranho. Enquanto sentia seu punho despencando em direção ao núcleo da terra, ele teve flashes estranhos passando em sua mente. Haviam penas, um homem sorridente e alto, raízes de árvores e, por fim, um falcão-peregrino, decolando vôo.
Por fim, o braço de Felipe alcançou a mesa. Nesse momento ouve um silêncio mortal na sala, a energética Nady havia se tornado uma senhorinha normal, encarando Felipe severamente.
Felipe se sentiu tonto, tudo foi girando, mas ele não tirava sua atenção daqueles olhos que agora estampavam preocupação e, talvez, decepção.
- E-eu acho... que quero... uma revan...- Disse Felipe despencando de cara na mesinha.
***
- Você acha que ele vai ficar bem?
- É claro que vai, eu só utilizei a força espiritual, não física.
- O resultado...
- Pois é, acho que Nana se enganou pela primeira vez...
Felipe estava deitado numa cama macia e aconchegante enquanto ouvia essas vozes. Elas saiam por de trás da porta do quarto, onde se encontrava uma sala de estar.
De alguma forma ouvir aquilo o afetou. Ele, em algum momento, em alguma parte de seu coração, se sentia decepcionado consigo mesmo.
" Minha avó estava errada?"
Foi então que ele resolveu se mover. Péssima decisão. Seu corpo parecia perfeitamente bem, mas era como se existisse um enorme peso sobre ele, além de Felipe se sentir esgotado. Era a mesma sensação, literalmente idêntica, a àquela que havia sentido em seu quarto, antes de toda essa loucura começar.
A porta se abriu. Era Breno.
Ele estava com uma péssima expressão, como se alguém tivesse morrido.
- Tá bem?
- Não. O que vocês querem dizer com " Nana se enganou"?
- Você estava ouvindo?
- Deviam falar mais baixo, afinal aqui é um asilo, não é mesmo?
- O que você ouviu exatamente?
- Não importa. Me responde.
- Você não devia ter ouvido nada.
- EU NÃO TÔ NEM AI, EU NÃO DEVERIA TER SIDO SEQUESTRADO, NÃO DEVERIA ESTAR NUM LUGAR COMPLETAMENTE ESTRANHO E COM PESSOAS VELHAS E MALUCAS, NÃO DEVIA ESTAR CONVERSANDO COM O CARA QUE DESMAIOU MINHA MÃE E É UM COMPLETO BABACA.
Nesse momento foi impossível segurar. Felipe estava cansado. Cansado de ser sempre o último a saber de qualquer coisa, ser sempre a vítima de todas as circunstâncias e fatos. Dessa vez ele não iria ser uma vítima, ele definitivamente iria agir.
- Eu vou te levar para casa, quero você preparado em dez minutos.- disse Breno com os braços cruzados, falando com seu jeito calmo e decidido, porém agora, pela primeira vez em toda a experiência que Felipe havia tido com ele, seus olhos não se encontravam mirando Felipe.
Felipe estava preparado para revidar quando Nady entrou ofegante no quarto, desesperada.
- Marcos está em apuros!
Breno deu um salto, encarou Felipe com o olhar mais feroz e severo que tinha e disse " Você fica", enquanto se pôs a correr em direção a saída.
A porta se fechou com um estrondo. A sala foi tomada pelo silêncio novamente, com excessão de uma mosca e a respiração ofegante de Felipe.
Ele não podia acreditar que tudo estaria acontecendo de novo. Ele seria, mais uma vez, aquele que espera tudo acontecer e no final pergunta "eai, como foi?". Ele seria novamente aquele que precisa ser salvo e que não pode salvar mais ninguém.
Esses pensamentos irritavam Felipe tanto quanto sentir a mosca caminhando pelo seu braço. Sua mão ja estava a caminho de mata-la mas, como todo ser humano já sabe, moscas são muito ágeis. Ela desviou e pousou bem na testa de Felipe.
Nesse momento ele se levantou, decidido a nunca mais ficar parado, esperando por um salvador ou por uma mão esmaga-lo como uma mosca sem fazer nada. Dessa vez ele ia agir, mais que isso, ia salvar esse tal Marcos. Não importava como.
Ele correu para a porta de entrada, mesmo se confundindo muitas vezes no caminho, e seguiu parra a rua. Foi ai que ele se perguntou " mas onde será que eles estão?", quando sua resposta veio em forma de um Ford Ka voador, caindo bem na sua frente.
Olhando na direção do estacionamento, Felipe pode assistir a um senhor com chapéu de caubói, botas de couro e uma jaqueta de couro em cima de um telhado gritando com um tornado. É, um tornado.
- MARCOS, DESCE AGORA DESSA MERDA DE TELHADO- gritou Nady para o velho irritado.
- Esse desgraçado arranhou a Monalisa. ELE VAI MORREEEER- disse o idoso corpulento, dando um salto sobrenatural para dentro do tornando misterioso.
- Seu filho de uma...
- Espera, eu cuido disso- disse Breno bloqueando a passagem de Nady com seu arco em mãos.
Breno começou a correr e na direção do tornado, puxando três flechas de sua mochila de acampamento e amarrado em cada uma uma corda.
O tornado foi ficando mais e mais potente, levantando telhas e pneus velhos e os atirando em Breno e seus amigos.
- O que o Breno tá fazendo?- perguntou Felipe para Nady e Sr. Bezerra, que estavam escondidos atrás do carro rosa que, agora faria muito sentido se ele fosse de Nady.
- Muleque, vai pra dentro, aqui é muito perigoso.
- Não, eu vou ajudar.
Beno disparou uma flecha que cruzou o tornado e se fincou no chão do lado oposto. Aparentemente era essa a intenção de Breno, que continuou a fazer o processo de quatro em quatro passos.
Atirar flechas roubava toda a atenção de Breno, que não percebeu uma telha vindo em sua direção. Nesse momento Felipe sentiu uma corrente de energia percorrer seu corpo e saiu em disparada na direção da telha.
Ele desviava de pneus , cacos de vidro, pedras e qualquer outro objeto arremessado pelo tornado de uma forma inacreditável. Dava piruetas, saltos, giros e socos em qualquer coisa, igual a um ninja, sem tirar os olhos da telha que se aproximava do distraído Breno. Com um golpe, Felipe chutou a telha para longe, reduzindo- a agora a vários pedacinhos.
- Como você...
- Seja lá o que você está fazendo, continua! Eu te dou cobertura.
Breno sorriu e acenou com a cabeça, num sinal de concordância. E assim os dois foram contornando o tornado feroz, que atirava mais e mais coisas para todo o lado, mas sem nenhuma acertar os dois, graças aos golpes ágeis e infalíveis dados por Felipe.
Breno preparou a flecha restante, que completaria um círculo feito de várias cordas, formando uma rede gigante. Quando a flecha final fincou- se no chão o tornado magicamente desapareceu, deixando no centro de sua localização um senhor muito irritado e um adolescente negro sem uma perna.
- Como sabia que isso ia funcionar?
- Não sabia, só suspeitava. Mas para descobrir, eu precisava tentar. E deu certo, tanto minha tese quanto o plano- disse Breno caminhando em direção aos dois caras capturados.
- De nada viu.
- É, estamos quites agora.
- Definitivamente não.
O menino negro se debatia na rede, desesperadamente, tentando achar uma brecha para escapar da rede, mas foi interrompido por Sr. Bezerra, que colocou uma peneira sobre o menino, fazendo com que seu corpo desaparecesse.
- Éé, parece que vamos precisar de uma garrafa.
***
Todos estavam sentados em volta de uma mesa de centro. Sobre ela uma garrafa de vidro, aparentemente vazia, selada com uma rolha.
Nady cuidava dos ferimentos de Marcos, que estava ainda muito irritado.
- Isso ai é mesmo o Saci?
- É UM saci. Existem vários.
- E o que ele estaria fazendo aqui?
- É exatamente o que iremos descobrir agora- disse vovó Nana, que entrava na sala junto de Luiza, a mãe de Felipe.
- Vovó!? M-mamãe?!
Felipe saiu em disparada ao encontro da mãe, a abraçando muito forte.
- Quer dizer que sofremos um ataque de um Saci.
- Esse safado, deixou minha pobre Monalisa assustada e toda arranhada.
- Para de chamar a porra da sua caminhonete de Monalisa, seu velho maluco- disse Nady.
- O que vocês estão fazendo aqui?- perguntou Felipe- Achei que ficar perto de mim só ia atrair mais perigo.
- Isso era verdade, os espíritos invadiram três grandes escolas do estado de São Paulo procurando por jovens com descendência Caraibana. Alguns estão tendo os pais assassinados a sangue frio, mesmo sem serem os pais daquele que eles procuram. Então achei mais seguro trazer sua mãe para um local com Caraibanos experientes.
- Espíritos invadindo escolas!? Como assim!?
- Aparentemente uma nova manifestação, caracterizada por usar máscaras de madeira, estão fazendo uma espécie de caçada para alguém. Não é muito comum encontrar um Saci num ambiente urbano, a menos que ele tenha sido enviado de propósito.
- Como alguém conseguiria convencer um Saci a fazer essas coisas?
- Ele estava sem a carapuça, certo? Um Saci sem carapuça é um Saci sem liberdade. Existe alguém que está tramando alguma coisa, uma coisa muito ruim. E, com certeza, é bem poderoso, visto que conseguiu criar sua própria especie de espíritos.
- Você está bem filho? Fiquei desesperada depois de tudo aquilo, até sua avó me ligar e explicar tudo.
- Quer dizer que você acredita em tudo isso? Mesmo sem ter visto nada de estranho?
- Sua mãe já estava ciente de toda a verdade por trás do nosso mundo. Ela leu o Acacium.- Disse vovó Nana.
- Tudo seria bem mais fácil se eu já soubesse disso- disse Breno- me desculpe, senhorita Luiza.
- Está tudo bem querido.
- Imagino que você e o Felipe queiram descansar um pouco, a viagem deve ter cansado demais a senhorita, sem mencionar que era pro Felipe nem conseguir se mexer depois de ter feito a prova da alma.
- Falando nisso, O QUE FOI AQUILO QUE EU FIZ!? Foi demais, eu me senti um verdadeiro Jackie Chan pulando daquele jeito.
- Podemos te explicar tudo depois, agora precisamos nos concentrar no interrogatório. Vai demorar um tempinho pra fazer o Pererê aqui deixar alguma coisa escapar- Disse Osvaldo, que tornava a jogar seu jogo.
- Pode levar sua mãe ao quarto, por favor, querido?- Disse Nana.
- Beleza... vó, eu queria te pedir desculpas por... por tudo.
- Pode ficar tranquilo querido, eu entendo completamente seu lado.
E então Felipe e sua mãe se dirigiram a um dos muitos quartos do asilo.
- Desde quando a senhora... quando você...?
- Sua avó me deu um exemplar do Acacium junto de outros presentes no seu chá de bebê. Até hoje sempre encarei o livro como uma ficção divertida, mas depois de ouvir sua avó ao telefone, depois de tudo o que aconteceu lá em casa... resolvi acreditar.
- E por que estaríamos envolvidos em tudo isso?
- O livro diz que a muitos e muitos anos antes da colonização do Brasil, existia uma tribo indígena que habitava a região sudeste do país. Eles possuíam um pagé que,além dele ter uma suposta origem ligada diretamente a primeira geração da humanidade, era muito ligado a natureza e a seus segredos mais profundos, . Como prova de sua amizade, a natureza presenteou o Page da tripo com o segredo da alma humana, que permitia que a natureza e o ser humano dividissem a mesma energia, despertando sentidos e habilidades que nunca seriam alcançadas pelo ser humano sozinho.
" O segredo foi dado para que o pagé compartilhasse com sua tribo e, assim sucessivamente com toda a humanidade, para que todos construíssem uma verdadeira e total comunhão com a natureza e os deuses. E assim foi feito, todos da tribo já dominavam o segredo e possuíam habilidades sobrenaturais que os ajudavam na caça, cura, conhecimento e muitas outras coisas e já estavam se preparando para espalhar o que sabiam para o mundo. Porém uma certa tribo resolveu fazer uso desse conhecimento para favorecer o bem próprio, querendo dominar todos a sua volta e, assim, superar os deuses."
- Que maluquice. Porém, já esperado do ser humano.
- Dizem que a tribo que recebeu o segredo primeiro se tornou responsável por aqueles que também conheciam e, entre eles, decidiram impedir a tribo inimiga de conquistar seus objetivos malignos e também privar o segredo, fazendo com que somente as próximas gerações da tribo conhecessem e tivessem a responsabilidade de lidar com o segredo e com os inimigos. Aqueles que descendem da tribo do pagé são conhecidos como os Caraíbas e, como sua avó me disse no caminho para cá, é a descendência na qual ela, seu pai e você pertencem.
- Mas e se essa "tribo inimiga" estiver conectada com os ataques que a gente tá sofrendo atualmente? E se foram eles quem enviaram o Saci pra cá e os espiritos mascarados também?
- Seria uma hipótese um tanto quanto precipitada. O Acacium diz que não se soube de atividades dessa tribo desde uma batalha travada a muito tempo, que não tem detalhes escritos.
- Qual é mãe, tá mais que na cara que é isso. Quem mais faria essas coisas loucas se não pessoas que também possuem esses poderes?!
- Se a resposta for mesmo essa, isso só abre mais espaço para mais perguntas. Primeiro, como eles sobreviveram a tal batalha e o que fizeram durante todo esse tempo?
- Mais importante que todas essas: o que realmente aconteceu nessa batalha?
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O Chamado do Vento Uivante
Adventure" Quando se recebe um dever do destino, é necessário atendê-lo. Quando o vento uivante sopra, é seu dever escutar." O Brasil esconde diversos segredos, dos seus tempos mais antigos até os atuais. Um problema foi causado por conta de um desses segr...