Capítulo Zero - parte 2

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Nuvens correram ligeiras pelo cenário, o vento começou a chiar. Corvos cruzaram o ar, mirando quase de perto a carne dos prisioneiros. A poeira coçou as pálpebras dos poucos curiosos presentes. E o carpinteiro, em meio a espasmos, sussurrou para ouvido nenhum:

— Tenho sede.

Quem ouviu, riu.

— Tantos criminosos por aí e vos interessais por um inocente? — o guerreiro reclamava. — Ladrões, corruptos, assassinos... Barrabás! E vós flagelais um carpinteiro? Roma na bosta dos nobres e vós, aqui, mijando num desprotegido?

— ... sede — o nazareno repetiu.

— Sede? — um dos soldados romanos se indignou. — Se tu és o rei, manda a ti as águas que se assentam sobre nós, vossa majestade — molhou uma esponja no vinagre, prendeu-a na lança e a fez tocar a boca do nazareno.

Vinagre na carne aberta; o crucificado gemeu.

O gladiador deu um passo à frente, jogou a pá longe e foi até um lanceiro ao seu lado, pouco afastado, que a tudo assistia entusiasmado, abraçado ao cabo da arma. Nisso, o céu começou a mostrar sinais de escuridão. Com um gesto bruto, o campeão catou a lança do sujeito, que, orgulhoso, pôs-se a se defender:

— Ei! Larga minha arma, seu bosta... Oh! Ave, César! Calma lá, podes ficar com ela, gladiador — olhou para o chão. "Com esse infeliz eu não me envolvo, nem se César mandar." — Podes ficar, minha lança agora é tua, campeão.

Com a arma em riste, o gladiador andou em direção às cruzes. Os outros dois presos alarmaram-se. Sem perder tempo, o malicioso começou a gritar por clemência:

— Campeão! Misericórdia... — calou-se ao perceber que o bruto não se interessava por ele e sim pela cruz do meio, então mudou o tom: — Ei, isso, Campeão de Roma, deixa-me e faz valer a lei de César nele. Em mim não, nele sim. O povo sabe, é ele quem o povo quer, é ele quem o governador Pilatos condenou.

As injúrias do falante não eram percebidas pelo gladiador que só escutava trovões na divisa da montanha distante, onde uma tempestade começou a se revelar. Contudo, o guerreiro não olhava para o horizonte. Enfiou uma esponja num balde com água, ajeitou-a na ponta da lança e a levou à boca do nazareno, molhando seus lábios fendidos.

As nuvens fecharam-se mais.

Enquanto o soldado oferecia água ao sujeito, outros romanos começaram a importunar a senhora e a jovem que se afastaram da cruz. Mobilizaram-se em massa para cima da jovem. Maria Madalena, uma beleza frágil, ali, entre os porcos.

— Puta!

— Linda demais, não?

Espalharam moedas aos pés dela, tocando-se com as mãos marcadas pelo couro do chicote. Quando terminou de servir o crucificado, o guerreiro escutou a agitação, virou-se e avistou a jovem jogada de quatro.

— Madalena! — não a notara antes. O guerreiro estivera o tempo todo com a atenção no galileu, e a mulher escondia-se em mantos que mal deixavam os olhos aparentes. Mas agora, caída e exposta, seu rosto se destacava e a lembrança queimou o gladiador. A memória do corpo dela pinçou sua palma grossa e o homem pôde sentir a pele da mulher em seus lábios.

A cabeleira daquela mulher, ondulada igual a uma cachoeira, marcava as retinas do romano todas as vezes que ele piscava no isolamento do escuro, sentindo o cheiro dela quando recriava na mente os gemidos e sussurros. Promessas incertas; talvez pagas, talvez honestas. Ela fora sua companheira por várias estações, nos tempos de paz e noites estreladas; ouvira as mais íntimas súplicas do gladiador, seus medos e tristezas, retribuindo com o calor de um abraço e a umidade de um beijo. Em seu colo, o Campeão de Roma fora uma lebre num campo sobrevoado por falcões.

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