Durban, 5 de novembro de 2143
"A cidade está morta. Daqui 5 minutos e 37 segundos estará cheia, colorida e movimentada. O homem velho, troca seu tempo por um valor inexistente. A mulher velha, troca seu valor inexistente por juventude. E a mulher nova, troca sua juventude por falso reconhecimento. Todos defendem suas trocas com unhas e dentes, exceto os introvertidos." Li num cartaz.
Estou refugiado em uma biblioteca que perdeu seu uso. Aqui entram duas pessoas por mês: uma perguntando onde fica o salão de beleza 'Um Livro de Opções Cabelísticas' e a outra é o dono da biblioteca. Ele é um homem velho, que esconde as rugas atrás do cabelo e da barba. Conversamos sobre religião, governo e filosofia. Ele me fez uma proposta quando vim pedir abrigo: "Se você ler 3 livros por mês, terá meu cantinho garantido aqui." Desde então já li 61 livros.
Não vejo o velho mais do que uma vez na semana, só me resta o caminhar noturno para chamar de passatempo. Levo comigo um bloco de notas feito de papel e couro, uma caneta e uma luva para esconder os sinais. Passo por bares, boates, becos, mas raramente encontro um banco. As grades de proteção na praia me servem de mesa quando decido escrever.
Certo dia, voltando da caminhada, fui pego pela polícia. Me revistaram e tive que ir pra delegacia, por sorte a Rebelião fazia uma manifestação na rua onde entramos. Os policias tiveram que intervir, me liberando devido à falta de espaço na viatura. Saí com uma nova marca no braço mas nada que uma camisa não escondesse.
Chegando na biblioteca, Harvey, o mendigo que morava em frente, me esperava com uma caixa na mão. Perguntei se era pra mim, ele disse que um homem parou ali e o entregou a caixa sem dizer uma palavra, apenas lhe dera 10 dólares. Pela cor dos olhos de Harvey já havia gasto o dinheiro. Peguei a caixa e entrei. Dentro dela havia várias cartas de papel e um chip cerebral. As cartas estavam em uma outra língua que eu não sabia identificar, apenas uma estava legível. Ela dizia: "Tentativa 1, leia rápido". Indo contra a carta, guardei-a embaixo do travesseiro e fui dormir.
No outro dia, acordo com o som de batidas na porta da frente da biblioteca. Coloquei uma roupa um pouco mais apresentável que guardava pra algum futuro cliente. Abri a porta e lá estava, um homem alto, magro e já com cabelos brancos. Ele disse:
- Gostaria de comprar um livro, mas só tenho 10 dólares.
- Pode escolher o que quiser – E o deixei entrar.
O homem entrou, sem ao menos olhar, ele pega o primeiro livro que vê na frente, diz obrigado e sai. O que achei de extrema grosseria, mas o livro que pegou valia dois dólares mesmo.
Depois de comer alguns restos de comida que estavam na geladeira, lembrei da caixa cheia de cartas. Decidi testar o chip que tinha vindo junto. Sentei no sofá velho na área de leitura perto da geladeira, e abri meu córtex. Admito que tive medo na hora de testar o chip, havia boatos que estavam colocando vírus nos chips e depois cobrando pra tirar, mas não tinha muito a perder. Quando conectei o chip, levei um tipo de choque, comecei a tremer e a perder o controle do corpo. Centenas de imagens passaram na minha cabeça, logo percebi que eram memórias. Depois de uns segundos de transe, consegui parar de tremer. Tudo começou a fazer sentido.
Nasci em Dublin, na Irlanda. Meus pais vendiam doces caseiros, pães, queijos e algumas cadeiras artesanais feitas pelo meu pai. A rotina era cansativa, depois dos meus 8 anos já comecei a ajuda-los, varria a casa, alimentava os animais e às vezes até fazia meus doces personalizados (só eu comia). Morávamos longe do centro da cidade, nossa casa era pequena, mas aconchegante.
Lembro de quando levaram minha mãe, eu tinha 13 anos. Era um dia lindo, alimentava os cães quando vi a viatura chagando da outra quadra. Corri para meu quarto, meu pai escondeu os rádios antigos que usava e saiu pela porta. Depois de uns minutos, ele entra no meu quarto chorando, disse que eu não a veria mais. Tivemos que vender suas roupas e joias, as cadeiras e os pães não pagavam mais as contas.
Nos mudamos para um apartamento no centro com o dinheiro da casa. Meu pai começou a trabalhar em uma fábrica de componentes eletrônicos, mas nunca gostou de lá. Ele trabalhava de manhã e de tarde, a noite dizia que fazia hora extra, mas nunca acreditei. Como trabalhar não era mais uma escolha pra mim, comecei a vender maconha. Aproveitava que ele saia e chamava os clientes lá pra casa. Certo dia ele demorou pra chegar. Sentei na janela que dava de frente pra rua, e esperei, foram duas horas de espera, até ele chegar, todo cheio de sangue. Corri pra porta pra ajuda-lo, mas, ele entrou, foi para seu quarto e lá ficou até o outro dia, nem olhou na minha cara. Admito que não dormi aquela noite.
De manhã, ele me chama pra conversar, disse que ia explicar tudo. Sentamos na mesa da sala. Sua cara estava preenchida de curativos e inchaços.
- Você sabe do programa Córtex 1?
- Não. – Claro que eu sabia.
- Eles querem armazenar nossas memórias pra futuras pesquisas, o presidente quer começar com as pessoas da classe D e ir subindo.
- E? – Ainda estava bravo com ele.
- Sua mãe e eu juntamos um grupo de pessoas, pra tentar impedi-los. Chamamos de Rebelião.
- Minha mãe morreu por causa disso? – Gritei.
- Ela acreditava na gente..., eu tenho um plano. Preciso da sua ajuda filho.
- Nunca mais peça nada pra mim... – Fui interrompido por um estouro na porta. Ela voou pela sala, e de lá entraram vários policiais armados. Meu pai me escondeu dentro do armário da pia, que era gigante. Eles o pegaram com tasers, e o levaram pra fora. Logo antes de me acharem.
Acordei em uma lixeira num beco da rua 568A. Estava tonto, e com a mão enfaixada. Fui tirando o pano aos poucos, e logo foi aparecendo as marcas. Estava escrito o número 789 em preto, como uma tatuagem, e logo abaixo: "Desacato à autoridade nível 1". Comecei a sentir dores na cabeça, quando coloquei a mão na nuca senti como se tivessem entradas para cabos, como um painel de metal. Agora falo isso, mas na hora não vi essas coisas como estranhas, simplesmente sabia que aquilo era daquele jeito. Parecia normal. Igual quando tentamos lembrar de como aprendemos a dormir, respirar ou mexer no celular.
Criei uma língua própria pra mandar cartas, difícil, quase indecifrável, chamei de Russo. A primeira das cartas indecifráveis dizia: "Tentativa 12: Escreva isso tudo em Russo. Tentativa 15: Troque o lugar dos 10 dólares a cada tentativa. Tentativa 19: Harvey é de confiança mas não abuse quando seus olhos estiverem vermelhos. Tentativa 25: Os policias estão cada vez mais rápidos, não demore. Tentativa 30: O velho morreu. Tentativa 34: O homem alto e magro é seu pai mas não há tempo para procurá-lo. Tentativa 35: Não sei se consigo mais fazer isso. Tentativa 36: Destrua o chip.
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Durban 2143
Kısa HikayeAchamos que sabemos o que eles nos fazem, e eles sabem disso. Seu pai fazia parte de uma organização de rebeldes e sua mãe morrera pela causa. Você não pode se render à cegueira.